quinta-feira, 6 de agosto de 2015

UMA CLARA MANHÃ DE VERÃO







Era uma clara manhã de verão. Embora a maldição da guerra continuasse ceifando vidas e destruindo sonhos, ali, naquela cidade, o terror dos bombardeios aéreos ainda não chegara. Era uma manhã que prometia a paz de um céu azul. Uma manhã sem nuvens.

O padre católico Wilhelm Kleinsorge havia acabado de se sentar para ler o jornal em seu quarto, no terceiro andar da Missão jesuítica onde morava. Toshiko Sasaki, auxiliar administrativa de uma fábrica de alumínios, abria a gaveta de sua escrivaninha para dar início ao seu dia de trabalho. Hatsuyo Nakamura, uma viúva de guerra, estava em casa com seus três filhos, observando pela janela o vizinho praticamente demolindo a sua. O Dr. Terufumi Sasaki andava pelo corredor do hospital da Cruz Vermelha, onde trabalhava, com amostras de sangue para exame. Masakazu Fujii, também médico, olhava para a rua, em pé, no portal superior de sua residência, que havia transformado numa clínica, perto do rio. Se algum deles tivesse olhado para o seu relógio, o mostrador estaria marcando oito horas e quinze minutos, em ponto. Naquele exato momento, um gigantesco clarão transformou para sempre suas vidas.

Seis horas antes, o Tenente-Coronel Paul Tibbets iniciou o rolamento de seu avião pela pista do campo de pouso de North Fields, nas ilhas Marianas. Era ainda noite e teve de esperar um pouco até que o pequeno grupo de fotógrafos fosse retirado de seu caminho. Ele ainda acenou da janela da carlinga, na qual, no dia anterior, mandara pintar o nome de sua mãe, que ele descrevia como uma corajosa mulher ruiva chamada Enola Gay. Duas horas depois, ele chegou ao ponto de encontro com outras duas Superfortalezas B-29 sobre a ilha de Iwo Jima. Juntas, as aeronaves rumaram para o Japão.

O CORONEL TIBBETS ACENA, ANTES DE PARTIR
Às sete e meia, os alarmes começaram a soar nas cidades japonesas. Quinze minutos depois, as sirenes anunciavam o fim do aviso. Os observadores aéreos haviam detectado apenas três aviões, o que descartava a possibilidade de um bombardeio, e classificaram o raid como, possivelmente, uma missão de reconhecimento. Naquele mesmo instante, o armeiro auxiliar do Enola Gay desceu até o compartimento de bombas e destravou o gatilho de segurança de um artefato de 3,2 metros de comprimento e 60 centímetros de diâmetro, em forma de um charuto robusto, carinhosamente batizado de Little Boy. Quase às oito e quinze, sobrevoando  a  9.500 metros de altitude a cidade de Hiroshima, o Coronel Tibbets deu a ordem ao seu oficial bombardeiro e Little Boy foi lançado. Levou 43 segundos para chegar à altura de 600 metros,  diretamente em cima da ponte Aioi, sobre o rio Ota. Aí, ele explodiu.

LITTLE BOY: A BOMBA LANÇADA SOBRE HIROSHIMA

O ENOLA GAY LANÇANDO LITTLE BOY. ALVORECER DA ERA ATÔMICA
























Quando o padre Kleinsorge voltou a abrir os olhos, ele andava só de cuecas na pequena horta da Missão. Estava ferido superficialmente nas costelas. Sua primeira conclusão foi de que uma bomba havia caído sobre o prédio onde estava. Estranhamente, o edifício estava de pé, mas todas as outras casas ao redor haviam desaparecido. E o céu estava completamente escuro. Na hora do flash, Toshiko Sasaki ficara paralisada pelo medo. Segundos depois, quando as estantes que estavam por trás de sua cadeira caíram sobre ela, perdeu a consciência. Ao recuperá-la, percebeu horrorizada que sua perna estava torcida de uma maneira pouco natural e que uma montanha de livros a tinha soterrado. Logo a seguir ao clarão, a senhora Nakamura sentiu-se levantada por uma poderosa lufada de vento que a jogou no quarto ao lado, juntamente com destroços de paredes, telhado e mobília que compunham a sua casa. Assim que conseguiu levantar-se, correu à procura dos filhos. Só encontrou a mais nova, chorando e semi coberta de pedaços de madeira. Enquanto lutava para resgatar a menina, chamava pelos outros dois, sem ouví-los. O Dr. Terufumi viu o grande relâmpago brilhar através de uma janela pela qual acabara de passar. Foi o tempo de ajoelhar-se e os vidros estilhaçaram-se. E com eles, todo o hospital. Seus óculos haviam sido lançados contra a parede, assim como a ampola de sangue que carregava. À sua frente, a sala de exames para onde se dirigia não estava mais lá. Masakazu Fujii de repente viu-se no meio das águas do rio Ota, com todo o resto de sua clínica. Estava encaixado no meio de dois longos lambris de madeira, que o apertavam como os pauzinhos para refeição apertam um sushi. Seu ombro esquerdo doía insuportavelmente e seus óculos tinham sumido.

HIROSHIMA: ANTES E DEPOIS DA EXPLOSÃO
Sem ter noção do que acabara de acontecer, esses cinco indivíduos, que se encontravam a menos de dois quilômetros do centro da explosão, iriam miraculosamente sobreviver. Ao seu redor, uma cidade inteira deixara de existir. Noventa mil pessoas, um terço de sua população, morreram naquele instante. Setenta mil estavam feridas. Noventa porcento das construções estavam destruídas. Os efeitos da radiação iriam matar mais 40 mil nos próximos anos.

Passaram-se várias horas até que o Supremo Comando japonês entendesse o que ocorrera. A primeira indicação veio do comunicado de uma aluna secundária, que fora recrutada pelo Quartel-General do Distrito Militar da região de Chukogu, onde ficava Hiroshima. “A cidade foi atingida por um novo tipo de bomba. Hiroshima está num estado de quase total destruição”, disse Yoshie Oka com sua voz adolescente. Dois dias depois, seria a vez de Nagasaki. E o mundo então acordou para a Era Atômica.

FOTO TIRADA PELA TRIPULAÇÃO DA B-29 NECESSARY EVIL, QUE ACOMPANHAVA O ENOLA GAY, MINUTOS APÓS A EXPLOSÃO. ENQUANTO O COGUMELO SE LEVANTA A MAIS DE 10 MIL METROS, UMA FULIGEM NEGRA COBRE O QUE RESTA DE HIROSHIMA.



Passaram-se 70 anos daquele seis de agosto de 1945. Os arsenais ainda estão por por aí. Paradoxalmente, o balanço dos inventários nucleares serviu de antídoto contra seu uso, principalmente durante as quedas de braço da Guerra Fria. Isso, e o bom senso. E a esperança de que cogumelos atômicos nunca mais se ergam sobre os escombros do nosso futuro.

PS.: Como dizem os americanos, credit where credit is due (crédito onde o crédito é devido). A história dos cinco sobreviventes, rigorosamente verídica, contada acima foi baseada no livro Hiroshima, do jornalista e escritor John Hershey, que o publicou logo após o término da guerra.


Oswaldo Pereira
Agosto 2015





4 comentários:

  1. Arrepiante.........e esse deve ter sido mesmo o motivo que impediu novas experiências.......que Deus ilumine suas mentes....

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    1. Embora hoje existam tratados e mais tratados limitando e proibindo o uso de armas nucleares, há muita gente à margem ainda pensando na bomba, como Irã, Coreia do Norte e alguns pedaços da ex-União Soviética, que herdaram parte do seu arsenal. Haja orações...

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  2. Oswaldo
    Apesar disso tudo, ainda hoje não temos paz no mundo. Ainda que não se use mais esse poder estúpido de destruição, as guerras estão aí, rondando os quatro cantos.
    Grande abraço
    Zé Correa

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    1. Será que o instinto bélico faz parte da condição humana? Desde os antigos egípcios, raros foram os momentos de paz total no mundo...

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