Era
uma clara manhã de verão. Embora a maldição da guerra continuasse ceifando
vidas e destruindo sonhos, ali, naquela cidade, o terror dos bombardeios aéreos
ainda não chegara. Era uma manhã que prometia a paz de um céu azul. Uma manhã
sem nuvens.
O
padre católico Wilhelm Kleinsorge havia acabado de se sentar para ler o jornal
em seu quarto, no terceiro andar da Missão jesuítica onde morava. Toshiko
Sasaki, auxiliar administrativa de uma fábrica de alumínios, abria a gaveta de
sua escrivaninha para dar início ao seu dia de trabalho. Hatsuyo Nakamura, uma
viúva de guerra, estava em casa com seus três filhos, observando pela janela o
vizinho praticamente demolindo a sua. O Dr. Terufumi Sasaki andava pelo
corredor do hospital da Cruz Vermelha, onde trabalhava, com amostras de sangue
para exame. Masakazu Fujii, também médico, olhava para a rua, em pé, no portal
superior de sua residência, que havia transformado numa clínica, perto do rio.
Se algum deles tivesse olhado para o seu relógio, o mostrador estaria marcando
oito horas e quinze minutos, em ponto. Naquele exato momento, um gigantesco
clarão transformou para sempre suas vidas.
Seis
horas antes, o Tenente-Coronel Paul Tibbets iniciou o rolamento de seu avião
pela pista do campo de pouso de North Fields, nas ilhas Marianas. Era ainda
noite e teve de esperar um pouco até que o pequeno grupo de fotógrafos fosse
retirado de seu caminho. Ele ainda acenou da janela da carlinga, na qual, no dia
anterior, mandara pintar o nome de sua mãe, que ele descrevia como uma corajosa mulher ruiva chamada Enola Gay.
Duas horas depois, ele chegou ao ponto de encontro com outras duas
Superfortalezas B-29 sobre a ilha de Iwo Jima. Juntas, as aeronaves rumaram
para o Japão.
O CORONEL TIBBETS ACENA, ANTES DE PARTIR |
Às
sete e meia, os alarmes começaram a soar nas cidades japonesas. Quinze minutos
depois, as sirenes anunciavam o fim do aviso. Os observadores aéreos haviam
detectado apenas três aviões, o que descartava a possibilidade de um bombardeio, e classificaram o raid como, possivelmente, uma missão de
reconhecimento. Naquele mesmo instante, o armeiro auxiliar do Enola Gay desceu
até o compartimento de bombas e destravou o gatilho de segurança de um artefato
de 3,2 metros de comprimento e 60 centímetros de diâmetro, em forma de um
charuto robusto, carinhosamente batizado de Little
Boy. Quase às oito e quinze, sobrevoando
a 9.500 metros de altitude a
cidade de Hiroshima, o Coronel Tibbets deu a ordem ao seu oficial bombardeiro e
Little Boy foi lançado. Levou 43
segundos para chegar à altura de 600 metros,
diretamente em cima da ponte Aioi, sobre o rio Ota. Aí, ele explodiu.
LITTLE BOY: A BOMBA LANÇADA SOBRE HIROSHIMA |
O ENOLA GAY LANÇANDO LITTLE BOY. ALVORECER DA ERA ATÔMICA |
Quando
o padre Kleinsorge voltou a abrir os olhos, ele andava só de cuecas na pequena
horta da Missão. Estava ferido superficialmente nas costelas. Sua primeira
conclusão foi de que uma bomba havia caído sobre o prédio onde
estava. Estranhamente, o edifício estava de pé, mas todas as outras casas ao
redor haviam desaparecido. E o céu estava completamente escuro. Na hora do flash, Toshiko Sasaki ficara paralisada
pelo medo. Segundos depois, quando as estantes que estavam por trás de sua
cadeira caíram sobre ela, perdeu a consciência. Ao recuperá-la, percebeu
horrorizada que sua perna estava torcida de uma maneira pouco natural e que uma
montanha de livros a tinha soterrado. Logo a seguir ao clarão, a senhora
Nakamura sentiu-se levantada por uma poderosa lufada de vento que a jogou no
quarto ao lado, juntamente com destroços de paredes, telhado e mobília que
compunham a sua casa. Assim que conseguiu levantar-se, correu à procura dos
filhos. Só encontrou a mais nova, chorando e semi coberta de pedaços de madeira.
Enquanto lutava para resgatar a menina, chamava pelos outros dois, sem
ouví-los. O Dr. Terufumi viu o grande relâmpago brilhar através de uma janela
pela qual acabara de passar. Foi o tempo de ajoelhar-se e os vidros
estilhaçaram-se. E com eles, todo o hospital. Seus óculos haviam sido lançados
contra a parede, assim como a ampola de sangue que carregava. À sua frente, a
sala de exames para onde se dirigia não estava mais lá. Masakazu Fujii de
repente viu-se no meio das águas do rio Ota, com todo o resto de sua clínica.
Estava encaixado no meio de dois longos lambris de madeira, que o apertavam
como os pauzinhos para refeição apertam um sushi.
Seu ombro esquerdo doía insuportavelmente e seus óculos tinham sumido.
HIROSHIMA: ANTES E DEPOIS DA EXPLOSÃO |
Sem
ter noção do que acabara de acontecer, esses cinco indivíduos, que se
encontravam a menos de dois quilômetros do centro da explosão, iriam
miraculosamente sobreviver. Ao seu redor, uma cidade inteira deixara de
existir. Noventa mil pessoas, um terço de sua população, morreram naquele
instante. Setenta mil estavam feridas. Noventa porcento das construções estavam
destruídas. Os efeitos da radiação iriam matar mais 40 mil nos próximos anos.
Passaram-se
várias horas até que o Supremo Comando japonês entendesse o que ocorrera. A
primeira indicação veio do comunicado de uma aluna secundária, que fora
recrutada pelo Quartel-General do Distrito Militar da região de Chukogu, onde
ficava Hiroshima. “A cidade foi atingida por um novo tipo de bomba. Hiroshima
está num estado de quase total destruição”, disse Yoshie Oka com sua voz
adolescente. Dois dias depois, seria a vez de Nagasaki. E o mundo então acordou
para a Era Atômica.
Passaram-se
70 anos daquele seis de agosto de 1945. Os arsenais ainda estão por por aí.
Paradoxalmente, o balanço dos inventários nucleares serviu de antídoto contra
seu uso, principalmente durante as quedas de braço da Guerra Fria. Isso, e o
bom senso. E a esperança de que cogumelos atômicos nunca mais se ergam sobre os
escombros do nosso futuro.
PS.:
Como
dizem os americanos, credit where credit
is due (crédito onde o crédito é devido). A história dos cinco
sobreviventes, rigorosamente verídica, contada acima foi baseada no livro Hiroshima, do jornalista e escritor John
Hershey, que o publicou logo após o término da guerra.
Oswaldo Pereira
Agosto 2015
Arrepiante.........e esse deve ter sido mesmo o motivo que impediu novas experiências.......que Deus ilumine suas mentes....
ResponderExcluirEmbora hoje existam tratados e mais tratados limitando e proibindo o uso de armas nucleares, há muita gente à margem ainda pensando na bomba, como Irã, Coreia do Norte e alguns pedaços da ex-União Soviética, que herdaram parte do seu arsenal. Haja orações...
ExcluirOswaldo
ResponderExcluirApesar disso tudo, ainda hoje não temos paz no mundo. Ainda que não se use mais esse poder estúpido de destruição, as guerras estão aí, rondando os quatro cantos.
Grande abraço
Zé Correa
Será que o instinto bélico faz parte da condição humana? Desde os antigos egípcios, raros foram os momentos de paz total no mundo...
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