quinta-feira, 26 de março de 2015

FAXINA






Somos acumuladores. Temos todos, infiltrada nas curvas do nosso DNA, a mensagem genética dos caçadores-coletores que fomos por milênios nas tundras do neolítico.  Gostamos de juntar, colecionar, guardar, entesourar, encafifar, de figurinhas da Copa do Mundo a obras de arte. Na vasta gama das disponibilidades financeiras, da mais modesta à mais abastada, o pendão de amealhar coisas parece ser um trejeito comum a todos, uma mania endêmica do ser humano.

Há pessoas que elevam isto à categoria de distúrbio, uma síndrome que exige cura antes que elas sucumbam no interior de uma casa atulhada do chão ao teto de quinquilharias ou que gastem até o último vintém numa compra supérflua e repetitiva. Muitos casos já foram reportados de desesperados sofredores desse mal agudo, afogados em milhares bugigangas pelo simples fato de não suportarem alienar seus objetos queridos.

E é isto que, em maior ou menor grau, sempre nos aflige. Unido à indolência que parece nos entorpecer toda vez que pensamos em fazer uma faxina em nossos inventários, o vácuo sentimental de desfazer-se de algo que traz apegado a si uma referência, um canto de história, a poeira de uma gostosa lembrança, nos deixa inertes e indecisos. Tente fazer uma simples seleção de fotos antigas (sejam elas digitais ou aquelas em papel de margens picotadas e amarelecidas pelo tempo). Quer jogar esta fora? É... melhor não, é da minha primeira comunhão... E esta? Acho que podemos rasgar... De jeito nenhum, foi no dia do primeiro Rock’n’Rio... CD’s do século passado, uma tortura. Revistas velhas, então...

Existem alguns tratamentos de choque que, de vez em quando, a vida nos impõe. Mudanças, por exemplo. É a grande hora, na qual diferenças de espaço podem nos constranger a encurtar o rol de bens amealhados por anos e nos obrigar ao grande sacrifício do desapego. E os anúncios da OLX estão aí para ajudar. Por outro lado, muita coisa de nós está sendo, queiramos ou não, armazenada ad æternum na Grande Nuvem que paira sobre a floresta da world wide web...

Falamos de coisas. E se falarmos de desventuras, desamores, espinhos enterrados em escaninhos da memória, sentimentos torcidos por alguma desatenção, uma palavra cruel, cujo som ainda ecoa no labirinto dos neurônios? Como faxinar nossa mente? Como despejar no lixo do esquecimento frases apodrecidas que nos fizeram mal, injustiças daninhas que continuam secando as videiras da nossa esperança, saudades sufocantes de perdas irreparáveis? Como rasgar imagens de ofensas, de indiferenças, de abandonos?

Bem aventurados os que esquecem. Mais bem aventurados ainda são os que esquecem seletivamente, ou seja, conseguem encher as gavetas do cérebro só com o que há do bom e do melhor. Há sempre espaço...


Oswaldo Pereira
Março 2015



2 comentários:

  1. Apagar da mente é difícil, senão impossível. Como na Lousa Mágica. Erguese a folha de rosto e a imagem desaparece, mas na "pedra" da base, alí permanece.

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