sexta-feira, 27 de junho de 2014

PAUSA



Pausa. Vinte e quatro horas sem a esfuziante adrenalina da bola rolando. Acabou a primeira parte do grande espetáculo, o drama global que nós, terráqueos, resolvemos chamar a celebração quadrienal do futebol, este esporte que, há alguns anos, o National Geographic Magazine considerou o segundo maior motivador da honra nacional. O primeiro, a Guerra. Um alienígena que porventura aportasse seu disco-voador por estas plagas poderia até convencer-se que, por uma suave ordem planetária, as diferenças eram resolvidas por uma esfera de couro pintado.

Se fosse uma refeição sofisticada, é a hora do trou normand, o “buraco normando”, geralmente representado por um sorbet de limão com vodca, que a culinária francesa resolveu apelidar a pausa entre os acepipes de entrada e o prato principal. Um momento entre a sofreguidão do início e a solenidade grave dos sabores profundos.

Para mim, terminou a melhor fase da Copa. A fase da festa, até da inconsequência, onde uma derrota não significa necessariamente a despedida, em que alguns pecados até podem ser perdoados. Foi a hora em que as trinta e duas seleções ainda nutriram esperanças ligeiras, trinta e duas nacionalidades de torcedores coloriram as margens dos estádios, e os bares das cidades-sede. E foi aí, neste carnaval multicor que o Brasil, e o futebol, se superaram.  O país, pelo acolhimento generoso que comoveu todas as delegações estrangeiras, pelo fervor na hora do Hino capado deselegantemente pela FIFA, pela superação dos problemas deixados por uma administração incompetente. Pelo amor de todos os seus deuses, caros leitores, não creditem nas urnas o sucesso (até agora) desta Copa ao Governo, seja ele qual for, Federal, Estadual ou Municipal. Quem garantiu o placar foi o povo brasileiro.

Quanto ao esporte, já há motivos de regozijo. Com raríssimas exceções, foram 48 jogos em que a magia do futebol mostrou-se sem reservas. A média de gols, 2,83, já é uma das maiores. Surpresas abundaram, derrubando opiniões de experts e bolsas de apostas pelo mundo afora, como a eliminação prematura da Espanha, da Itália, da Inglaterra, do Portugal de Cristiano Ronaldo. Numa chave que reunia sete títulos mundiais, a Costa Rica (!?) classificou-se em primeiro lugar. Várias coisas entrarão para a história, até a maior punição imposta a um jogador, Luiz Suárez do Uruguai (cá entre nós, um prato cheio para um analista...)

Agora, algumas arenas ficarão vazias. As suas cidades, esvaziadas das hordas coloridas. Terão de enfrentar o seu destino e procurar defender os estádios milionários da mordida do abandono. E uma nova fase começa. É hora dos gladiadores, do ave Caesar, morituri te salutant, do mata-mata. Não há mais lugar para deslizes, passes mal dados, chutes a esmo.

Mais 15 dias e o drama baixará as cortinas. E aí, para nós brasileiros, começará outro desafio.

PS.: Os meus livros continuam disponíveis aí no lado direito. É só clicar...


Oswaldo Pereira

Junho 2014

sexta-feira, 20 de junho de 2014

PEQUENOS INVASORES (VOLUME I)







PEQUENOS INVASORES é um livro diferente. Conforme explicado em sua Introdução, representa a união de duas coisas que me dão enorme prazer: montar e pintar miniaturas, e escrever.


E, a partir de agora, ele está disponível aqui no blog. Para acessá-lo, basta clicar no ícone da capa, no alto à direita. Como está em arquivo pdf, pode ser lido na tela, em tablets, i-pads e que tais, baixado, salvado, anexado a e-mails, enviado, distribuído, divulgado, até impresso, se quiserem. Enfim, tal como o meu LIVRO DE CONTOS (que vocês já devem ter lido, com certeza...) está ao fácil alcance de qualquer leitor interessado.



E é GRÁTIS...   


Oswaldo Pereira
Junho 2014

quarta-feira, 18 de junho de 2014

70 ANOS DO DIA-D (2ª PARTE)





SOUTHWICK HOUSE
Southwick House é uma imponente mansão, de três andares, branca e com colunas clássicas ornando a entrada, localizada a norte da cidade inglesa de Portsmouth. Em junho de 1944, funcionava como quartel-general do SHAEF (Supreme Headquarter Allied Expeditionary Force) ou o Supremo Comando da Força Expedicionária Aliada. Ou seja, da liderança da Operação Overlord. E foi numa de suas amplas salas que, na madrugada do dia cinco, o general americano Dwight Eisenhower, com base nas últimas avaliações do meteorologista-chefe de sua equipe, William Stagg, tomou a crucial decisão de levar à frente a maior operação militar já montada. Stagg finalmente informara o que ele queria ouvir. Um breve período de calmaria no instável e traiçoeiro tempo do Canal da Mancha, que se estenderia por todo o dia seguinte.

Ninguém se lembra ao certo o que Eisenhower falou, depois de andar de mãos coladas às costas por vários segundos com o semblante grave. Mas, levando em conta o estilo curto e objetivo do general, todos os que lá estavam (incluindo o marechal Montgomery, os generais Bradley e Bedell Smith, e os britânicos Leigh-Mallory e Ramsey) concordam que foi algo como “OK. Let´s go” (OK, vamos). Três palavrinhas em inglês que puseram em marcha uma gigantesca máquina bélica de 11.600 aviões, 6.000 navios e embarcações e 156.000 homens.

 
EISENHOWER VISITANDO OS PARAQUEDISTAS (05/06/44)
Os primeiros a irem para o solo francês eram os sinalizadores da 101ª Divisão Aerotransportada dos Estados Unidos. Sua missão era tão importante quanto quase suicida – saltar à noite num território infestado de alemães para instalar guias luminosos e orientar os aviões dos 15.000 paraquedistas que viriam a seguir. Entre os comandantes aliados, alguns projetavam a taxa de mortalidade desses precursores em aproximadamente 70%. Antes que os transportes aéreos levantassem voo, Eisenhower foi despedir-se deles. Embora o moral entre os soldados estivesse alto, ele sabia que estava mandando para a morte talvez sete em cada dez daqueles sorridentes jovens.

Foi a noite das noites, como o dia seis foi o dia dos dias. Mesmo das tropas que desembarcariam em cinco praias da Normandia, a expectativa “aceitável” de baixas era de 30% (isto é, quase 50.000 mortos ou feridos). E o sucesso iria depender da capacidade dos paraquedistas interromperem as comunicações e os acessos dos alemães à praia, da eficiência dos ataques dos bombardeiros nos dias anteriores e das baterias dos navios de apoio, da rapidez do desembarque sob fogo inimigo, escolhido para ser realizado na maré baixa com o objetivo de evitar os obstáculos plantados por Rommel, da possibilidade do solo arenoso ser suficientemente duro para suportar o peso dos blindados. E, crucialmente, do sucesso das manobras de dissimulação que fariam os alemães acreditar que o desembarque verdadeiro aconteceria através do Passo de Calais.

Só este planejamento, que receberia o nome de Operação Bodyguard (Guarda Costas), consumiria milhares de horas transmissões falsas, extraordinárias medidas de contra espionagem e, até, a construção de um exército fictício, com campos de pouso de mentira, aviões e tanques de papelão para enganar possíveis levantamentos aéreos, colocados estrategicamente próximos à costa em frente a Calais. Para chefiar esta armada-engodo, o comando aliado designou ninguém menos que o general mais respeitado pelos nazistas – George Patton. E isto acabou por convencer os alemães. Mesmo apesar dos inúmeros vazamentos e de indicações de agentes da Inteligência de que o destino da invasão seria a Normandia, Hitler e seu Estado-Maior descartavam essas fontes, creditando-as a pistas propositalmente deixadas pelos aliados para desviá-los do objetivo verdadeiro, o Passo. E aí começou a série de imponderáveis que brincaram com o destino e a sorte no Dia D. 

Em primeiro lugar, os paraquedistas não foram dizimados na proporção estimada, mas poucos conseguiram executar as suas missões. Os ventos e as baterias antiaéreas os espalharam por uma larga área e a maioria caiu longe de seus pontos pré-determinados. A seguir, embora as ondas de soldados que desembarcaram em Sword e Gold (ingleses) e Juno (canadenses) encontrassem pouca resistência, os americanos, em Utah e, principalmente, Omaha, não tiveram tanta fortuna. Especialmente nesta última, as primeiras fileiras que saíram das lanchas foram dizimadas. Só na primeira hora, morreram quase 3.000 homens. Duas horas após a chegada às praias, a situação era tão grave que o general Omar Bradley solicitou ao seu staff planos emergenciais de retirada. Omaha era o objetivo tático mais importante de toda a operação, pois era o caminho mais eficiente para a conquista do porto de Caen. Um fracasso aí, e Overlord correria um imenso risco.

Por esta hora, as notícias começavam a chegar aos postos de comando alemães perto da costa e, logo a seguir, às chefias militares do OKW (Alto Comando do Exército) em Paris. Em mais uma brincadeira do destino, Rommel não estava em seu posto. Viajara a Berlim para o aniversário da mulher. Muitos outros comandantes estavam ausentes, participando de reuniões. A confusão era geral, enquanto se procurava saber o que se passava, qual a extensão do ataque e, de suma importância, se era isto a Invasão ou apenas um ardil. 


PRAIA DE OMAHA (06/06/44)

Nas praias, a situação evoluía rapidamente. Enquanto nas outras quatro as tropas invasoras haviam progredido para além da orla, em Omaha a 29ª Divisão de Infantaria estava paralisada nas areias. Aos poucos, entretanto, mercê de ações individuais de rangers e engenheiros militares e das exortações de seu comandante, o general Norman Cotta (que disse: estamos sendo mortos na praia. Então, vamos para o interior e sermos mortos lá),  as tropas começaram a avançar. Mas, só às cinco da tarde, onze horas após o desembarque, os primeiros soldados conseguiram ultrapassar as linhas de defesa da Wehrmacht.

Faltava, ainda, um capitulo final.

Mesmo apesar de as cabeças-de-praia terem sido estabelecidas, na manhã do dia sete, a vitória não estava assegurada. O grosso dos blindados ainda não chegara e os aliados estavam vulneráveis. Era a hora de usar as divisões Panzer que estavam em reserva. Um contra-ataque poderoso poderia jogar os invasores de volta no mar. Aí, o destino jogou pesado. A utilização das reservas dependia de autorização pessoal do Führer. Mas, Hitler estava dormindo profundamente, sob a ação de barbitúricos. E o General Jodl, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, não quis acordá-lo...

Foi por pouco. E, por isso, o Dia D será sempre lembrado como o mais decisivo dia da História Moderna.


Oswaldo Pereira

Junho 2014

domingo, 8 de junho de 2014

70 ANOS DO DIA-D (1ª PARTE)





“Our landings in the Cherbourg-Havre area have failed to gain a satisfactory foothold and I have withdrawn the troops. My decision to attack at this time and place was based on the best information available. The troops, the air and the Navy did all that bravery and devotion to duty could do. If any blame or fault attaches to the attempt it is mine alone”.
(Nossos desembarques na área de Cherbourg-Havre não conseguiram estabelecer um ponto de apoio e eu retirei as tropas. Minha decisão de atacar neste momento e nesse lugar foi baseada nas melhores informações disponíveis. As tropas de terra, de ar e a Marinha fizeram tudo o que a bravura e a devoção ao dever podem fazer. Se alguma culpa ou falha pode ser atribuída à tentativa é minha somente).

Estas palavras foram escritas pelo general americano Dwight D. Eisenhower, comandante supremo das forças aliadas, no dia cinco de junho de 1944. Eram a base de um pronunciamento que faria ao mundo se a operação de desembarque em solo francês não sucedesse. A partida já havia sido adiada para o dia seguinte devido ao mau tempo e apenas uma janela de algumas horas de bonança no dia 6 prometia a possibilidade de um ataque em condições mínimas. Era a última chance. Se não ocorresse ali, as circunstâncias ideais, que conjugavam fase da lua, tabela de marés e bom tempo, só se repetiriam em julho, mais de um mês depois. Um adiamento impossível, haja vista os problemas de sigilo militar que cercavam a operação e a própria manutenção de quase três milhões de soldados em solo inglês.

Este foi um dos muitos imponderáveis que marcaram o Dia-D, por todos os motivos o dia mais decisivo da História Moderna. Uma desistência ou um malogro, que determinaria meses até que outra tentativa pudesse ser organizada, significaria dar à Alemanha nazista o que ela mais precisava no momento – tempo. Estudiosos de guerra são unânimes em afirmar que, sem uma segunda frente no oeste, Hitler teria retardado o avanço soviético no leste, aperfeiçoado seu arsenal de bombas-voadoras, iniciado a produção de aviões a jato (já em etapa experimental) e, até, construído seus primeiros artefatos nucleares. Qualquer dúvida quanto à capacidade germânica de produção é respondida pelo extraordinário poderio demonstrado pela Wehrmacht em dezembro daquele mesmo ano, quando, já debilitada pelos impiedosos bombardeios e pelo avanço simultâneo dos exércitos russos e aliados, ainda conseguiu montar a ofensiva do Bulge. É assim quase certo que, com a Alemanha de posse desses novos armamentos e livre de inimigos no solo ocidental do continente europeu, a maré da Segunda Grande Guerra poderia ter mudado. E o mundo não seria nada do que é hoje.


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LANCHAS DE DESEMBARQUE
Overlord, a operação que viria a mudar o curso da História, começou a ser planejada no primeiro semestre de 1943. Desde o ano anterior, Josef Stalin atormentava Churchill e Roosevelt, exigindo o estabelecimento de uma segunda frente, com o objetivo de aliviar a pressão dos alemães sobre os russos, que morriam aos milhões. Enquanto o Presidente americano apoiava um ataque frontal através do Canal da Mancha, caminho mais curto para atingir o coração da Alemanha, o premier inglês, testemunha dos massacres sofridos pelos britânicos em batalhas semelhantes no Somme e em Passchendaele, durante o conflito de 1914-1918, defendia um avanço através da Itália, a partir do norte da África, já controlado pelos aliados. The soft underbelly of the crocodile (a barriga tenra do crocodilo), era como Churchill chamava a região do Mediterrâneo, uma via mais suave para atingir a Áustria e o sul alemão. Os americanos, que supririam a maior parte das tropas e dos equipamentos, venceram a discussão. A campanha italiana, já em curso, teria papel secundário.
 
EISENHOWER (COMANDANTE SUPREMO) E MONTGOMERY (COMANDANTE DAS FORÇAS TERRESTRES)

Assim, em maio de 1943, o general inglês Frederick Morgan foi encarregado de montar Overlord. No caminho crítico de seu planejamento, ele trabalhava com vários limitadores. O primeiro era o alcance do indispensável suporte aéreo, que restringia a área de atuação a quatro objetivos: o Passo de Calais, a Península de Contentin, a Britânia e a Normandia (como Contentin e a Britânia eram, na verdade, istmos, permitindo um contra-ataque alemão fechando a passagem e dividindo as tropas invasoras, as duas opções foram logo abandonadas). O segundo era o número de lanchas de desembarque. O número adequado do efetivo militar para um assalto daquela magnitude, inicialmente prevendo cinco divisões, foi aumentado para sete, quando o plano foi apresentado a Eisenhower na reunião de Quebec, em dezembro daquele ano. Isto determinava a necessidade estimada de aproximadamente 9.000 lanchas, quantidade inexistente na época. Outro fator era a restrição do comando aliado ao ataque direto a um porto. Embora fosse imprescindível a existência de um para o sucesso de Overlord, o desastre de Dieppe, ocorrido um ano antes, em que os canadenses haviam sido dizimados num assalto frontal ao bem guarnecido porto francês, excluíam a possibilidade. Eventualmente, o pessoal da engenharia criou uma maravilha da tecnologia moderna: as docas flutuantes Mulberry, impressionantes estruturas que seriam rebocadas desde a Inglaterra e ancoradas perto das praias. Por último, mas certamente não menos importante, estava o inimigo.



ROMMEL INSPECIONANDO A MURALHA DO ATLÂNTICO
Desde o momento em que invadiu a União Soviética, em junho de 1941, e, principalmente, após a entrada dos Estados Unidos na guerra, Hitler começou a se preocupar com uma possível tentativa de desembarque aliado a oeste. Isto faria ressurgir o fantasma de um conflito em duas frentes, que havia exaurido a Alemanha na Primeira Grande Guerra. Então, já em 1942, ordenou a construção de fortificações ao longo de toda a costa ocidental europeia, desde o norte da Noruega até a fronteira da Espanha, um verdadeiro muro ao longo do Atlântico, que se eternizaria com o nome de Fortaleza Europa.  Evidentemente, mesmo com o uso extensivo de trabalho escravo, seria impossível aparelhar todos os mais de 7.000 km de costa com o mesmo padrão de bunkers, baterias, arame farpado e minas e, já no início de 1944, muita coisa ainda estava incompleta, como verificou seu comandante, o experiente marechal de campo Erwin Rommel.  A solução foi concentrar o aparelhamento das defesas nos sítios onde mais provavelmente o inimigo atacaria – a costa francesa em frente à Inglaterra. Desde a colocação de centenas de milhares de armadilhas de aço, que perfurariam o casco das embarcações invasoras, ao reforço dos castelos de concreto onde se alojavam os ninhos de metralhadoras e as bases dos morteiros, até ao plantio de seis milhões de minas terrestres, tudo foi feito com precisão. Adicionalmente, como se desconhecia o lugar exato do provável desembarque, três divisões Panzer ficariam em reserva, prontas a serem deslocadas para onde ocorresse a ação.

Assim, no início de junho de 1944, enquanto os preparativos finais da maior operação militar já desencadeada chegavam a seu final em solo inglês, do outro lado do canal uma calma pressaga flutuava pelas escarpas enevoadas da Normandia.


Oswaldo Pereira
Junho 2014



segunda-feira, 2 de junho de 2014

O ADEUS DOS BONS




Quando meu pai nasceu, na primeira década do século passado, coisas como honra, honestidade e dever eram sentimentos tão fortes e arraigados que sua presença parecia fisicamente real.  A perda ou o abandono de qualquer deles, mais do que a punição imposta pelas leis, significava o anátema da sociedade, o desprezo dos pares, a vergonha de toda uma família. Penas criminais ou ostracismo eram o destino. Às vezes, o suicídio.

Quando eu nasci, nos anos 1940, as noções de ilícito continuavam claras, mas o peso do repúdio social já não era assim tão grave, o julgamento popular não possuía mais seu caráter demolidor. Já existiam políticos sorridentes que apregoavam o “rouba, mas faz” e obtinham sucesso nas urnas. Certos da leniência de um eleitorado ou de seu rol de amigos, indivíduos assumiam o risco de seus atos ilegais, mas sabiam que, se apanhados, não escapariam das malhas da justiça.

Quando meus filhos nasceram, há quarenta anos, o poder coator da justiça havia perdido sua força. Sabia-se do ilícito, mas o abrandamento da legislação penal, a morosidade dos tribunais e um arcabouço de filigranas jurídicas habilmente manuseadas pelos advogados tornavam uma condenação, ou sua execução, um evento cada vez mais distante e improvável. Instituições nacionais como o jeitinho e as múltiplas isenções às sentenças condenatórias deterioravam rapidamente o conceito de punibilidade e castigo.

Agora que nasceram meus netos, eu vejo estarrecido que o próprio conceito do ilícito está prestes a morrer. Ilegal, e daí? seria por si só um perigoso lema, uma brincadeira retórica destrutiva, se não fosse aquilo que na realidade é, uma filosofia comportamental perniciosa, cuja disseminação pode comprometer a existência mesma da ordem sócio-política. O que realmente atemoriza é o fato dessa disseminação ter sua fonte de alimento no danoso exemplo com que os homens públicos deste país nos brindam diariamente.  Um dilúvio de desmandos que cai em cascata pelos patamares da vida nacional, escorrendo pelos desvãos do nosso cotidiano, da obra superfaturada, da propina nas concorrências, na fraude de aposentadorias indevidas, na “cola” em exames escolares, na cervejinha do guarda, na compra de ingresso ao cambista. E na passividade com que se verifica o desaparecimento dos honestos, a partida dos honrados, o adeus dos bons, quando se vê o presidente da Suprema Corte desta Nação renunciar precocemente ao cargo, intimidado por ameaças e ter sua saída saudada por associações de políticos e juristas. Que sombrio recado para os juízes que ainda tentam brandir a chama da lei, as testemunhas que poderiam acusar um corrupto, o cidadão, enfim, que ainda tentava acreditar.

Triste. Muito triste...


Oswaldo Pereira
Junho 2014