sábado, 25 de janeiro de 2014

ALCOCHETE







Reza a História que a Peste Negra mudou o destino de Alcochete. 

Provavelmente originária da Ásia Central, a terrível epidemia chegou à Europa, em meados do século XIV, pelos caminhos da Rota da Seda. Seu veículo transmissor foram as pulgas que infestavam os pelos dos ratos pretos, hospedeiros que proliferaram com fantástica velocidade num ambiente onde havia restos de alimentos, muita gente e nenhuma higiene. Atingindo o Continente Europeu pela Crimeia, foi dizimando indiscriminadamente, e com extrema rapidez e letalidade, os habitantes das cidades medievais em todos os países. Só entre 1348 e 1350, matou mais de 75 milhões de pessoas – um em cada três europeus. E continuou matando durante um século. Foi a primeira e única vez na História que a população mundial decresceu. Foram necessários 150 anos para que ela voltasse ao nível pré-epidemia.

IGREJA MATRIZ DE ALCOCHETE

Ninguém estava a salvo. Nem pobres, nem ricos, nem senhores, nem camponeses. E nem Reis. Mas estes, pelo menos, tinham mobilidade assegurada, e fugiam de suas capitais para refúgios em aglomerados menores, de bom clima e bons ares. Assim, D. João I, Rei de Portugal, resolveu transferir-se para uma pacata vila do outro lado do Tejo, onde o rio alargava a distância entre suas margens, criando um quase-mar plácido e ensolarado, e que parecia longe o bastante para protegê-lo das pulgas assassinas.

Esse lugar já era habitado desde o neolítico. Os romanos também haviam estado por ali, fabricando ânforas para transporte de alimentos. Depois, vieram os mouros. Sua atividade concentrou-se na agricultura, principalmente nos citrinos e, para irrigá-la numa terra de pouca chuva, criaram um sofisticado sistema de canais. Também construíram um forno, substantivo português cuja tradução para o árabe é al caxet. O nome ficou, mas os filhos de Alá foram varridos na reconquista cristã.

ESTÁTUA AO SALINEIRO - CENTRO VELHO
Alcochete encontrou, então, sua primeira vocação sustentada, a extração de sal marinho. Sal sempre foi sinônimo de pureza e, talvez por isso, tenha atraído D. João I. Pureza e ar limpo pareciam bons antídotos contra a Peste.

Por via das dúvidas, seus descendentes resolveram ficar mais umas quantas gerações no lugar, enquanto o perigo não se extinguia de todo. Graças a essa decisão, a vila prosperou, tornando-se um pólo salineiro e um movimentado entreposto, de onde partiam e aonde chegavam embarcações que atendiam a um próspero comércio de mercadorias. Tornou-se também berço de infantes reais da Dinastia de Avis. Em 1459, ali nasceu o mais famoso deles, pelo menos para nós brasileiros, o futuro Rei D. Manuel I, dito o Venturoso, cujas naus foram descobrir a Ilha de Vera Cruz.

POR-DO-SOL NO TEJO
Mas, nada dura para sempre. Os reis se foram quando a Morte Negra foi finalmente erradicada e, lentamente, a terra definhou. No século XIX, motivos de divergência política com Lisboa causaram-lhe a perda da autonomia municipal para a Aldeia Gallega, hoje Montijo, ganha ainda ao tempo da residência real. No século seguinte, sua postura historicamente antagônica ao Poder Central transformou-se em renitente resistência ao Estado Novo de Salazar, com suas previsíveis consequências. Paralelamente, o sal-gema já substituía com vantagens econômicas o sal marinho, a construção da então Ponte Salazar (hoje Ponte 25 de Abril) diminuía o fluxo do transporte marítimo entre a margens do rio e a poluição destroçava uma piscicultura quase artesanal. Nem vocação turística lhe sobrara, ofuscada pelas praias da Costa da Caparica.

Voltamos ao “nada dura para sempre”. Na década de 1990, outro evento veio salvar Alcochete. Graças a Deus, não era outra Peste. Era outra Ponte.

Construída entre 1994 e 1998, a Ponte Vasco da Gama viria desaguar na margem sul do Tejo a meros 4 quilômetros da cidade. De repente, Alcochete ficara vizinha de porta de Lisboa, a apenas 18 quilômetros do Parque das Nações e da Estação do Oriente, terminal de ligação de transportes terrestres urbi et orbi. Ou seja, um imã para quem trabalhasse na capital, em saturação imobiliária, e desejasse morar numa atraente suburbia.

Não deu outra. Em meses, a indústria da construção civil pôs-se a atender à demanda. Felizmente para todos, o bom senso prevaleceu e não houve o mesmo crescimento desordenado que transformara Almada e Barreiro em cidades-dormitório, com seus imensos blocos escuros de apartamentos tristes. Preservou-se o delicado e charmoso centro histórico, amenizou-se a fachada dos novos prédios, arborizaram e floriram as rotundas. Na entrada da cidade, instalou-se um dos mais famosos outlets da Europa, o imenso mall do Free Port, para o qual já há linhas de ônibus que trazem o turista sedento de boas barganhas diretamente do Aeroporto da Portela.


Os que têm mais tempo vêm saborear as iguarias que povoam os cardápios de uma variada oferta de ótimos restaurantes, atualmente elevando Alcochete à categoria de point gastronômico por excelência.



Acham que estou exagerando? Então venham conferir. De preferência no Verão, quando a Praia dos Moinhos se colore durante o Festival Internacional de Papagaios, as ondas brincam com os praticantes do kitesurf, a forte tradição taurina se reafirma nas touradas e largadas da Festa do Barrete Verde e o ar fino se mistura à perfumada fumaça que sobe dos assadores de sardinha espalhados pelas ruas do velho centro.

FESTA DO BARRETE VERDE
FESTIVAL DE PAPAGAIOS



FREE PORT OUTLET




Os Reis de Avis tinham razão.


Oswaldo Pereira
Janeiro 2014



6 comentários:

  1. Erros meus, má fortuna, Amor Ardente,
    em minha perdição se conjuraram,
    os erros e a fortuna sobejarão,
    Amor que a mim bastara tão somente.

    Adorei o Quase Mar. Entre touros, turistas, sardinhas, bandeirolas e pontes, bastaria o Horizonte. Um mundo com menos festa e sobretudo com menos gente.

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    1. É bem provável que Camões tenha andado pelas terras de Alcochete. Afinal, aqui vivia o Rei boa parte do ano. E, se olhou para o sol poente descendo em fogo para dentro da boca do Tejo numa melancólica tarde de Outono, pode muito bem ter-se inspirado para escrever este soneto. E talvez outros...

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    2. Ando irremediavelmente apaixonada por Villa Matas. Permitam-me compartilhar um breve trecho do "Ar de Dylan" que nem é o melhor livro dele.

      "E se ao perscrutar o cosmos fica evidente a insignificância da existência humana? O homem, ser levíssimo, é sonhado por uma figura incerta, e o estado do mundo indica que, mais que a criação de um ser superior, somos o passatempo de um ser cheio de defeitos, um coitado, em todo caso ainda capaz de esboçar horizontes.
      Quando se medita sobre coisas tão arrevesadas, facilmente se fica bobo, absorto presa fácil de um possível grande susto."

      (indico "Suicídios Exemplares" de Enrique Villa Matas, um surpreendente conjunto de contos cheios de humor e reverencia.

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  2. Bom gosto é bom gosto. Constata-se, não se o discute. Compartilho esse entusiasmo com o amigo. Esses recantos limítrofes aos invernos insuportáveis são neste verão brasileiro o lugar para se estar.

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  3. A maior parte dos Portuguesês só se lembra de Alcochete ,graças a D. Manuel ! Mas o bom gosto vem de Dona Filipa. . . e o vosso também !

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  4. CERTAMENTE É UM LUGAR APRAZÍVEL E ENCANTADOR. FELIZ QUEM PODE VIVER POR AÍ.
    TUDO SE CONSTRÓI AÍ DENTRO DA NORMALIDADE E DAS POSSIBILIDADES.
    E A VILA DE ALCOCHETE SE REVITALIZOU E MOSTRA SUA HISTÓRIA.

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