VERÃO (ALGARVE)
Nove
da manhã. O sol explode na porta da pequena pousada e surpreende quem sai da
semi penumbra do saguão de entrada. Além
dele, o mar, lá embaixo, verde-azul profundo, abraçado por uma delicada enseada
de areias prateadas pelo dia algarvio e levemente ondulado pelo sopro de uma
brisa tão benfazeja como o silêncio que abençoa tudo em volta. É manhã de verão
nesta vilazinha praieira do sul português e é como se o mundo e o tempo
parassem para render seu tributo a este momento de paz maior que os sentidos. É
hora de usá-los com sapiência e saborear os cheiros de suave maresia, cheirar
as cores que branqueiam as casas e enverdecem a verdura dos campos, degustar
com os olhos bem abertos a sensação de primeiro dia do universo e ouvir a
quietude reinante.
A
escada de pedra vai serpenteando preguiçosa em direção à água, contornando com
carinho a aldeia de arquitetura simples e repousada em suas origens árabes.
Afinal, o norte africano está logo ali, do lado de lá deste azul real que se
estende à frente. Terras mouras, de onde eles vieram para dominar, por séculos,
esta península e deixarem, antes de partir, seu indelével traço genético que
ainda azeitona a pele dos que aqui vivem, além de sua arte e do vasto repertório
de palavras que enriquecem o nosso vocabulário. Como Al-Gharb, estreita faixa de terra entre o mar e a montanha, que
ficou para nomear esta província, a mais meridional do Portugal Continental.
É uma
terra de histórias, do projeto das descobertas concebido em Sagres, de saudades
de um Dom Sebastião que partiu atrás de uma miragem para seu destino em
Alcácer-Quivir, dos pedaços de nevoeiro que nunca mais o trouxeram de volta.
E é
aqui, nesta costa de casario alvo, manhãs claras, poentes mágicos, degraus
rústicos e silêncio dourado, perfumada pelo cheiro salgado do Atlântico, onde
mais se sente o esplendor, a eternidade e o feitiço do verão português.
OUTONO (LISBOA)
O
vento. A princípio, sente-se só sua mudança de humor, perdendo aos poucos seus
trejeitos de brisa, seus volteios alegres, franzindo o cenho e nos
surpreendendo com rajadas bruscas. Sem que se desse muito por isso, a música do
verão foi chegando às últimas notas de tons menores, cadenciando seu ritmo num tempo mais lânguido, à medida em que os
dias diminuíam e a noite se agigantava. E agora, do Terreiro do Paço ao Campo
Grande, das margens do Tejo às colinas do Monsanto, a natureza toca sua canção
de outono, as folhas douram e caem, a doçura do ar se afina e a melancolia do
poente bate mais na alma.
Quem
está em Lisboa começa a mudar hábitos. De ser e de vestir. Os passos ficam mais
apressados, os braços mais cruzados. Casacos,
mantas e pulôveres saem do ostracismo de suas gavetas e vão para a rua, olhar
algumas nuvens esfarrapadas e receber o batismo das primeiras chuvas. Pede-se
mais aconchego, os restaurantes da Baixa desmontam suas esplanadas coloridas, o
chocolate quente começa a ter mais popularidade que os gelados nas pastelarias
do Rossio.
Pede-se
mais abrigo. Uma sessão de cinema substitui com vantagens uma noite ao ar livre
e a saison dos bons espetáculos tem
início. E o outono segue pelas esquinas da cidade, espalhando descuidado um
manto de folhas secas para desespero dos limpadores de rua, desnudando as
árvores que ainda lutavam contra o despudor, levantando alguma saia com suas
baforadas travessas.
A
cidade parece mais viva depois do torpor do verão. A lua parece maior no azul
deste céu que já foi tantas vezes cantado em prosa, em verso e em celulóide. E
a fumaça que para ele sobe dos fogareiros de assar castanhas completa a
insuperável paisagem que a estação desenha todos os anos nesta linda capital
portuguesa.
INVERNO (TRÁS-OS-MONTES)
Dezembro.
O sol custa a acordar. E, quando o faz, não chega a libertar-se de sua grossa manta
de nuvens. Vai ficar pouco no céu, correndo célere para os lados do mar, bem
para lá das montanhas que cercam e escondem este singelo vale de caminhos de
pedra e de gente rude e forte. Aqui se tem o Douro ao sul, León a leste, Galiza ao
norte e o Tâmega para o poente.
E o
frio.
Quem
sonha com o Portugal-Jardim, sempre sorrindo ao sol de uma perene primavera,
quase não o reconhece aqui, encapuzado e cinzento em meio a um inverno branco e
ventoso. Mas, isolada por sua geografia tortuosa e seu clima destemperado, a
província trasmontana aprendeu a guardar seus costumes seculares e seu
linguajar único com o cuidado de um colecionador sovina. Cá se fala a lhéngua mirandesa, recentemente acolhida
como idioma independente e diverso do português. Também é a terra dos presuntos
de Chaves, das alheiras de Mirandela, do cordeiro do barroso, do caldo de
cascas, do javali estufado no pote. E
ainda dos queijos curados de cabra e de ovelha, dos vinhos brancos com “agulha”
e dos tintos que envelhecem com nobreza.
Assim,
se as rajadas da nortada borrifam de neve o rosto descoberto e o sol não lhe
quer dar as caras, entre sem demora em qualquer tasca, albergue, parador,
cantina ou restaurante e delicie-se. Quando de lá sair, verá que o mundo ficou
melhor, o tempo ganhou juízo e os montes que preservam este pedaço de Portugal
são, na verdade, guardiães de uma cultura ciosa de si mesma e orgulhosa de seus
valores.
E
chegará à inevitável conclusão de que o inverno é só um detalhe, um pano de
fundo, um ator coadjuvante neste cenário de pedra, tradições, sabores, passado,
pastos e colinas chamado Trás-os-Montes.
PRIMAVERA (DE NORTE A SUL)
É de
repente, numa noite ao final de março. Enquanto todos ainda dormimos, a
natureza acorda mais cedo e sai cobrindo de microscópicas folhinhas verdes os
ramos das árvores recém-despertas do sono gélido do Inverno. Parece mágica. E
é.
Quando
saímos para a rua, ainda meio acabrunhados pela lembrança de ontem, quando os
galhos lançavam seus dedos secos para um céu de chumbo e a esperança de dias
coloridos parecia sepultada num frio teimoso, a sensação é de que alguém
resolveu nos regalar um refinado mimo.
Para
quem mora neste abençoado retângulo chamado Portugal, este presente chega todos
os anos, pontualmente. E muito mais cedo do que nas outras terras deste e de
qualquer continente. Tem todo o aspecto de ser uma preferência especial de
algum deus, resultado de um pacto secreto e exclusivo com os heróis das
descobertas, talvez por sugestão de Camões ou outro vate lusitano. Motivo,
claro, de inveja e cobiça.
E se
fosse só o verde... O que atiça ainda mais o ciúme das demais gentes, é que,
logo em abril, o país inteiro, dos campos do Minho às escarpas do Algarve, das
praias da Estremadura às profundezas do Alentejo, se transforma num imenso,
ubíquo, magnífico e ilimitado jardim florido, desenrolando-se como um tapete de
mil cores aos raios do sol perene. Não há varanda que não se encha de vasos e
não derrame sua cascata de flores e perfumes, emprestando ao branco singelo das
casas um ar vivo de festa.
É a
época delas, das festas. Tradições, procissões, romarias. Cada aldeia, cada
vila tem suas preces a oferecer à Padroeira, principalmente à maior de todas,
no Altar do Mundo, em Fátima.
Todos
têm de ser reverenciados. Muito, pois não há dádiva igual a esta. Igual a esta
encantada primavera em Portugal.
Oswaldo Pereira
Dezembro 2013
Foi uma ótima ideia reeditar esses artigos de longa data, para mim desconhecidos.
ResponderExcluirNo "apagar das luzes de 2013" foi um privilégio ler " Portugal em 4 estações". A beleza do texto está à altura da beleza do meu país, já a riqueza do primeiro suplanta, de longe, a do segundo.