sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

PORTUGAL EM 4 ESTAÇÕES

VERÃO (ALGARVE)

Nove da manhã. O sol explode na porta da pequena pousada e surpreende quem sai da semi penumbra do saguão de entrada.  Além dele, o mar, lá embaixo, verde-azul profundo, abraçado por uma delicada enseada de areias prateadas pelo dia algarvio e levemente ondulado pelo sopro de uma brisa tão benfazeja como o silêncio que abençoa tudo em volta. É manhã de verão nesta vilazinha praieira do sul português e é como se o mundo e o tempo parassem para render seu tributo a este momento de paz maior que os sentidos. É hora de usá-los com sapiência e saborear os cheiros de suave maresia, cheirar as cores que branqueiam as casas e enverdecem a verdura dos campos, degustar com os olhos bem abertos a sensação de primeiro dia do universo e ouvir a quietude reinante.

A escada de pedra vai serpenteando preguiçosa em direção à água, contornando com carinho a aldeia de arquitetura simples e repousada em suas origens árabes. Afinal, o norte africano está logo ali, do lado de lá deste azul real que se estende à frente. Terras mouras, de onde eles vieram para dominar, por séculos, esta península e deixarem, antes de partir, seu indelével traço genético que ainda azeitona a pele dos que aqui vivem, além de sua arte e do vasto repertório de palavras que enriquecem o nosso vocabulário. Como Al-Gharb, estreita faixa de terra entre o mar e a montanha, que ficou para nomear esta província, a mais meridional do Portugal Continental.

É uma terra de histórias, do projeto das descobertas concebido em Sagres, de saudades de um Dom Sebastião que partiu atrás de uma miragem para seu destino em Alcácer-Quivir, dos pedaços de nevoeiro que nunca mais o trouxeram de volta.


E é aqui, nesta costa de casario alvo, manhãs claras, poentes mágicos, degraus rústicos e silêncio dourado, perfumada pelo cheiro salgado do Atlântico, onde mais se sente o esplendor, a eternidade e o feitiço do verão português.    

OUTONO (LISBOA)
O vento. A princípio, sente-se só sua mudança de humor, perdendo aos poucos seus trejeitos de brisa, seus volteios alegres, franzindo o cenho e nos surpreendendo com rajadas bruscas. Sem que se desse muito por isso, a música do verão foi chegando às últimas notas de tons menores, cadenciando seu ritmo num tempo mais lânguido, à medida em que os dias diminuíam e a noite se agigantava. E agora, do Terreiro do Paço ao Campo Grande, das margens do Tejo às colinas do Monsanto, a natureza toca sua canção de outono, as folhas douram e caem, a doçura do ar se afina e a melancolia do poente bate mais na alma.

Quem está em Lisboa começa a mudar hábitos. De ser e de vestir. Os passos ficam mais apressados, os braços mais cruzados.  Casacos, mantas e pulôveres saem do ostracismo de suas gavetas e vão para a rua, olhar algumas nuvens esfarrapadas e receber o batismo das primeiras chuvas. Pede-se mais aconchego, os restaurantes da Baixa desmontam suas esplanadas coloridas, o chocolate quente começa a ter mais popularidade que os gelados nas pastelarias do Rossio.

Pede-se mais abrigo. Uma sessão de cinema substitui com vantagens uma noite ao ar livre e a saison dos bons espetáculos tem início. E o outono segue pelas esquinas da cidade, espalhando descuidado um manto de folhas secas para desespero dos limpadores de rua, desnudando as árvores que ainda lutavam contra o despudor, levantando alguma saia com suas baforadas travessas.

A cidade parece mais viva depois do torpor do verão. A lua parece maior no azul deste céu que já foi tantas vezes cantado em prosa, em verso e em celulóide. E a fumaça que para ele sobe dos fogareiros de assar castanhas completa a insuperável paisagem que a estação desenha todos os anos nesta linda capital portuguesa.      

INVERNO (TRÁS-OS-MONTES)

Dezembro. O sol custa a acordar. E, quando o faz, não chega a libertar-se de sua grossa manta de nuvens. Vai ficar pouco no céu, correndo célere para os lados do mar, bem para lá das montanhas que cercam e escondem este singelo vale de caminhos de pedra e de gente rude e forte. Aqui se tem o Douro ao sul, León a leste, Galiza ao norte e o Tâmega para o poente.

E o frio.

Quem sonha com o Portugal-Jardim, sempre sorrindo ao sol de uma perene primavera, quase não o reconhece aqui, encapuzado e cinzento em meio a um inverno branco e ventoso. Mas, isolada por sua geografia tortuosa e seu clima destemperado, a província trasmontana aprendeu a guardar seus costumes seculares e seu linguajar único com o cuidado de um colecionador sovina. Cá se fala a lhéngua mirandesa, recentemente acolhida como idioma independente e diverso do português. Também é a terra dos presuntos de Chaves, das alheiras de Mirandela, do cordeiro do barroso, do caldo de cascas, do javali estufado no pote.  E ainda dos queijos curados de cabra e de ovelha, dos vinhos brancos com “agulha” e dos tintos que envelhecem com nobreza.

Assim, se as rajadas da nortada borrifam de neve o rosto descoberto e o sol não lhe quer dar as caras, entre sem demora em qualquer tasca, albergue, parador, cantina ou restaurante e delicie-se. Quando de lá sair, verá que o mundo ficou melhor, o tempo ganhou juízo e os montes que preservam este pedaço de Portugal são, na verdade, guardiães de uma cultura ciosa de si mesma e orgulhosa de seus valores.

E chegará à inevitável conclusão de que o inverno é só um detalhe, um pano de fundo, um ator coadjuvante neste cenário de pedra, tradições, sabores, passado, pastos e colinas chamado Trás-os-Montes.  

PRIMAVERA (DE NORTE A SUL)

É de repente, numa noite ao final de março. Enquanto todos ainda dormimos, a natureza acorda mais cedo e sai cobrindo de microscópicas folhinhas verdes os ramos das árvores recém-despertas do sono gélido do Inverno. Parece mágica. E é.

Quando saímos para a rua, ainda meio acabrunhados pela lembrança de ontem, quando os galhos lançavam seus dedos secos para um céu de chumbo e a esperança de dias coloridos parecia sepultada num frio teimoso, a sensação é de que alguém resolveu nos regalar um refinado mimo.

Para quem mora neste abençoado retângulo chamado Portugal, este presente chega todos os anos, pontualmente. E muito mais cedo do que nas outras terras deste e de qualquer continente. Tem todo o aspecto de ser uma preferência especial de algum deus, resultado de um pacto secreto e exclusivo com os heróis das descobertas, talvez por sugestão de Camões ou outro vate lusitano. Motivo, claro, de inveja e cobiça.

E se fosse só o verde... O que atiça ainda mais o ciúme das demais gentes, é que, logo em abril, o país inteiro, dos campos do Minho às escarpas do Algarve, das praias da Estremadura às profundezas do Alentejo, se transforma num imenso, ubíquo, magnífico e ilimitado jardim florido, desenrolando-se como um tapete de mil cores aos raios do sol perene. Não há varanda que não se encha de vasos e não derrame sua cascata de flores e perfumes, emprestando ao branco singelo das casas um ar vivo de festa.

É a época delas, das festas. Tradições, procissões, romarias. Cada aldeia, cada vila tem suas preces a oferecer à Padroeira, principalmente à maior de todas, no Altar do Mundo, em Fátima.

Todos têm de ser reverenciados. Muito, pois não há dádiva igual a esta. Igual a esta encantada primavera em Portugal.  

Oswaldo Pereira
Dezembro 2013

Um comentário:

  1. Foi uma ótima ideia reeditar esses artigos de longa data, para mim desconhecidos.
    No "apagar das luzes de 2013" foi um privilégio ler " Portugal em 4 estações". A beleza do texto está à altura da beleza do meu país, já a riqueza do primeiro suplanta, de longe, a do segundo.

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