terça-feira, 17 de dezembro de 2013

É NATAL!






Um grande abraço para todos!  Como bonus, um conto que escrevi há
 algum tempo, com muito espírito natalino... Espero que se divirtam.






« chovendo.»
«Eu sei.»
«Vai assim mesmo?»
«Que remédio...»

Ele tinha de ir. A mãe pedira. A irmã também. 

«Quanto tempo leva?»
«Normalmente, umas quatro horas. Mas, com a estrada molhada assim, mais de cinco».

Ficava longe. E o pior era o caminho: piso irregular e mal cuidado, curvas, subidas, descidas, sem acostamento. Fazer o quê... 

Era uma reunião de família. Seria a primeira, desde que saíra da casa dos pais, há onze anos. Eles haviam permanecido na pequena cidade do interior, onde ele nascera e fora criado; na mesma casa, assobradada e com quintal, com sua espaçosa sala de jantar e imensa cozinha, que fora cenário de sua infância e adolescência. E que agora, ao se preparar para reencontrá-la, saía dos escaninhos da memória e despejava gostos, cores e cheiros de cafés da manhã de invernos chuvosos, ele, menino, pouca vontade de ir para a escola; de almoços de domingo, família e parentes em volta da leitoa assada com tutu de feijão, seu olhar faminto procurando os olhos da priminha bonita que despertara sua primeira paixão; do jantar silencioso na véspera de embarcar de vez para a cidade grande.

Ele era o terceiro dos filhos, o caçula. A irmã morava no Nordeste. Casara, dera dois netos aos “velhos”, tirara a pressão da descendência de seus ombros e dos do irmão, que fora para os Estados Unidos há seis anos.

Enquanto jogava poucas coisas para dentro do saco de viagem, deixou as lembranças inundarem sua mente e agitarem seu coração. Como seria rever seu pai, abraçar a mãe? De repente, se deu conta do desleixo com que tratara essa relação, dos telefonemas esparsos, dos e-mails lacônicos. Com os irmãos também. Não pudera ir nem ao casamento da irmã, retido por inadiáveis compromissos profissionais (mas, será mesmo que não poderia ter dado um jeito?). Com o outro, se comunicava ainda menos (o fuso horário era uma desculpa aceitável).

«Desculpa eu não te levar, mas você sabe...»
«Eu sei, eu sei, querido...»

A irmã fora taxativa. Era só para a família imediata: os pais, ela e o marido, os dois filhos, ele e o irmão. Os relacionamentos “instáveis”, como ela própria adjetivara, como o dele, estavam fora. O irmão, que já devia estar voando para o Brasil, também viria só.

«Beijinho...Devo estar de volta na terça.»
«Vai com Deus, amor. Liga quando chegar lá. levando todos os presentes?»

Presentes de Natal. “Será que os pais ainda tinham a velha árvore?”, pensou, abrindo o porta-malas do carro na garagem.  

Ficou tentando imaginar como estariam todos. Mais velhos, claro. Não os via há mais de quatro anos. A mãe havia feito 55 anos em julho; o pai tinha três a mais. A irmã completara 30; o irmão, 28. As fotos que vira ao longo de todos esses anos não davam para revelar com precisão as marcas do tempo.

Jantar de Natal com a família, na noite de 24 de dezembro – este era o convite. A irmã acrescentara: «papai e mamãe avisaram que querem nos fazer uma grande surpresa. Não tenho a menor ideia do que é...»

O que seria? Algum problema de saúde? “Não, não fazia sentido, logo no Natal...”, pensou, enquanto pagava o sanduíche numa estação de serviço. Olhou para o relógio. Duas da tarde. Pelos seus cálculos, ainda mais umas duas horas e meia de estrada. Queria chegar antes de escurecer.

E chegou. Assim que estacionou o carro, viu a irmã descer pela escada da porta principal.
«Ué, já chegaram?»
«Sim. Conseguimos pegar uma conexão em Brasília...»
Abraçaram-se efusivamente.
«Você é mesmo um bicho do mato, hein?... Caramba, faz mais de quatro anos que não aparece, quase não manda notícia.»
«Que bom te ver, maninha. Uau, cê tá bonita, mais magra.»
Estava mesmo.
«Que nada... São teus olhos.»
Foram entrando na casa. Os cheiros de antigamente vieram prontamente ressuscitar as lembranças soterradas. Preocupado, perguntou:
«Então, como é que estão os velhos?»
«Olha, estão ótimos. Faz tempo que não os vejo tão alegres.»

Não precisou esperar muito para constatar. A mãe descia para a sala. O abraço foi longo, quase sem palavras, água nos olhos dela, nó na garganta dele.
«Ô mãe, que saudade...»
Ela segurou-lhe a cabeça, como fazia desde que ele era menino.
«Que bom que você veio, filho. Teu irmão já confirmou que chega amanhã de manhã. Finalmente, vamos passar um Natal juntos, graças a Deus!»
Ele também notou: ela estava radiante.
«Cadê papai?»
«Foi comprar umas coisas lá no mercado. chegando daqui a pouco. Mas, pegue a tua mala; o teu quarto está preparado.»

O quarto.
Voltou no tempo. A estante com os livros (28 volumes de uma coleção que nunca lera, alguns romances lidos pela metade, CDs antigos, VHS pré-históricos, jogos eletrônicos antediluvianos, álbuns de fotos...); a cama dos sonhos, dos pesadelos e dos prazeres solitários; o painel de cortiça com os instantâneos de uma vida inteira, times de futebol, namoradas, festas, passeios, pedaços do passado; o armário com o espelho que o vira crescer, transformar-se de menino em rapaz e de rapaz em homem e com as gavetas onde guardara suas roupas e seus segredos.
Ficou parado, olhando, respirando fundo, tragando com volúpia a fumaça entorpecente dos momentos idos, vividos, esquecidos, que agora voltavam de repente, inebriando-o com os odores, perfumes e fragrâncias de sua estória pessoal.
Levou algum tempo arrumando sua pequena bagagem. Depois, desceu.

O pai o esperava com um sorriso largo e os braços abertos. Primeiro abraço em muitos anos; antigamente, a cabeça dele ficava muito acima da sua. Agora, era o contrário. O pai brincou:
«Você cresceu ou eu diminui?»
«Você não me obrigou a fazer alongamento desde criança? Agora, aguenta...»
Deram uma grande risada. E se abraçaram de novo.
O pai também estava ótimo. Qual seria a surpresa?

O lanche foi ligeiro e frugal. A árvore estava lá, no mesmo canto da sala, as luzes coloridas, as bolas vermelhas e douradas, a estrela no galho mais alto, a “neve” de algodão pousado nos ramos. Os sobrinhos corriam em tropel, aos gritos. O cunhado fingia uma zanga de efeito apenas cosmético. A irmã ainda tentou furar o mistério.
«Então, que surpresa é esta?»
Os pais entreolharam-se sorrindo. A mãe continuou cortando mais uma fatia de bolo.
«É surpresa, ora. Primeiro, temos de esperar a chegada do teu irmão. E a revelação é para amanhã à noite, na ceia.»
«Poxa, mãe. Que saco!»
«Paciência, minha filha. Tudo na vida tem o seu momento certo.»
Seus olhos brilhavam. Os do pai também.

“Só pode ser uma boa notícia”, ele pensou, enquanto se espreguiçava e deitava na antiga cama.

Acordou com uma barulhada lá embaixo. Parecia um clarim. E era.
O irmão, só de sacanagem, trouxera um e agora o tocava, a plenos pulmões, do lado de fora da casa, às sete da manhã. 
Quando ele chegou à sala, a mãe já abrira a porta e o irmão entrava, triunfante, com um barrete de Papai Noel na cabeça e um enorme saco vermelho às costas. 
«Merry Christmas everybody! É Natal, moçada!...  Blém, blém, blém, sinos de Belém... Então, vamo cantar, gente...»
A mãe ria.
«Filho, olha os vizinhos!...»
Ele parou, levantou a mãe nos braços.
«Que mané vizinhos... Here comes Santa Claus, porra!»
O irmão sempre fora assim: irreverente, brincalhão, a alma das festas. Também sempre fora o mais levado, o instigador das traquinagens mais ousadas, sempre levando bronca, sempre se metendo em alguma. Mas, todos o adoravam e se rendiam à sua irresistível simpatia, seu sorriso desarmador, seus encantadores pedidos de desculpa.

Estavam todos juntos, agora.

O dia passou ligeiro. Ele andou pela cidade, foi até a praça principal, encontrou velhos amigos, velhas esquinas, velhas calçadas. Foi ao bar onde amarrou seu primeiro porre, uma garrafa de batida de limão, num Carnaval escondido no tempo. Viu de longe o cinema do primeiro beijo e o banco de jardim de sua primeira paixão recusada.
 
À tarde, os três irmãos ficaram varanda, conjeturando, aproveitando uma pequena ausência dos pais.
«Vai ver, acertaram na mega Sena», cogitou o irmão.
«Não, não pode ser», contestou a irmã. «Se fosse isso, já teriam trocado o carro. Ainda estão com aquela velharia do Escort. É outra coisa. O que você acha, mano?»
Ele não fazia ideia. «Sei lá! Será que vão viajar para algum lugar?»
«Não...», retrucou a irmã. «Já fizeram várias viagens, foram até a China e nunca criaram este suspense. Caraca, que mistério...»
O irmão deu um grito.
«Já sei! A mamãe está grávida; eles vão ter outro filho!»
«Não diga besteira, cara. A mamãe já está na menopausa», sentenciou a irmã.

A tarde escureceu com eles ainda no alpendre, dando tratos à bola, inutilmente. Sem decifrar a charada, foi cada um para seu quarto, preparar-se para a noite.

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A Ceia estava deslumbrante. Os pratos e os talheres eram de um serviço de família, herdado por umas duas gerações. A toalha fora comprada em França, os copos de cristal na República Checa, os guardanapos na ilha da Madeira – o que de melhor tinham em casa. O gigantesco peru estava cercado por uma coorte de travessas com castanhas, saladas, rabanadas, bolos, presuntos, sonhos, queijos, doces. Um espetáculo de fartura. Dez cadeiras rodeavam a mesa.

“Dez cadeiras?...”, pensou ele.  Ia perguntar quando o pai espoucou a rolha do primeiro champagne.
«Bem, meus filhos, meu querido genro e meus netos. Primeiro, um brinde a este Natal e à felicidade de estarmos todos juntos». Encheu as taças. Todos brindaram.
«E agora, o segundo motivo da nossa reunião de família. O que nós queríamos anunciar é que eu e a sua mãe vamos nos separar.»
Foi como se a Terra tivesse tremido e o teto desabado. Os seis pares de olhos arregalaram-se e viraram-se imediatamente para a mãe, sentada ao lado do pai. E ela sorria, calma, tranquila. Os seis pares voltaram para a figura do pai, que continuou.
«OK, eu sei que pode ser um choque para vocês, mas não havia outra maneira de dar a notícia. Mas, pelo amor de Deus, não fiquem tristes. Em primeiro lugar, quero que saibam que esta decisão foi tomada de comum acordo entre nós, depois de amadurecermos bastante a ideia, e de que estamos os dois perfeitamente conscientes do que estamos fazendo.»
Virou-se para a mulher. Ela levantou-se, segurando sua taça, o semblante sereno. Embora emocionada, a voz estava clara, quase alegre.
«Conscientes e felizes. Até porque, este desfecho coroa um processo que veio desenvolvendo-se por um longo tempo. Os nossos primeiros anos de casados foram dedicados a construir uma família, criar vocês, educar, dar-lhes um lar, prepará-los para a vida. Pouco tivemos tempo para nós, para nos conhecermos. Tínhamos casado depois de um noivado curto. E, mesmo se fosse longo, acho que ninguém se conhece realmente antes de viver junto, dia após dia, ano após ano. Só quando vocês se formaram e foram embora é que começamos a procurar o que verdadeiramente nos unia.»
Pôs a taça sobre a mesa, aproximou-se do marido e colocou a mão sobre seu ombro.
«Com o tempo, verificamos que, o que realmente nos unia, era só uma grande amizade. Éramos, somos, e seremos, sempre, grandes amigos. E até achamos que isto seria suficiente para manter-nos juntos indefinidamente.»
O pai retomou a palavra. Parecia que haviam ensaiado.
«Mas, acabamos descobrindo que não é. Como vocês devem saber por experiência própria, uma vida em comum pede alguma coisa mais. Ao lado do sabor básico da afeição e do companheirismo, ela exige a pitada de sal do sexo e o tempero do amor. E vimos que estes dois ingredientes faltavam, por assim dizer, na dispensa da nossa relação.»
Parou para sentir o efeito da sua figura de linguagem. Mas a plateia estava muda, petrificada, sem respiração. Continuou.
«Aí aconteceu um evento mais ou menos previsível. Eu encontrei alguém que preenche esta lacuna, que me trouxe esses ingredientes e que deseja compartilhá-los comigo pela vida afora.»
Levantou-se e abraçou a mulher.
«O mais fantástico de tudo é que, quase ao mesmo tempo, a mesma coisa aconteceu com a mãe de vocês.»
Ela sorriu com ternura.
«É verdade. Eu também achei uma pessoa maravilhosa e que também me propôs juntarmos os nossos caminhos. Não é incrível?»

O silêncio continuava sepulcral. Os netos estavam boquiabertos, o genro arfava, o irmão brincalhão perdera a graça, a irmã tinha uma pequena lágrima presa nos cílios inferiores. Ele só pensava: “Que noite de Natal...” O pai retomou.

«Bem, vamos às coisas práticas. Queria que soubessem que esta casa já foi passada para o nome de vocês. Antes do final do ano, eu vou para a Itália em lua de mel com essa pessoa e depois vamos morar em Roma.»
«E eu vou para São Paulo por uns tempos, com meu novo amor», completou a mãe. E prosseguiu.
«Bem, esta ceia não estaria completa se os nossos novos parceiros não participassem dela.» Voltou-se para o marido. «Querido, não quer chamá-los?»
«Sem dúvida! Eles estão lá fora, esperando a hora de entrar. Venho já.»

A mãe ficou contemplando as expressões de espanto. Que mais espantadas ficaram quando o pai voltou, conduzindo um casal composto de um rapaz jovem, na faixa dos vinte e muitos, bem-apessoado e simpático e uma senhora de cabelos brancos, ainda bem bonita, aparentando uns sessenta anos. Ambos, um pouco tímidos, cumprimentaram a pequena audiência familiar. A pedido da mãe, sentaram-se nas cadeiras que ainda estavam vazias.

A ceia começou soturna. Lentamente, a alegria contagiante dos pais, o genuíno interesse dos recém-chegados em criar um clima ameno e de paz e o champagne em profusão levantaram o astral. Embora desconcertados e profundamente surpresos, os membros da família foram, cada um à sua maneira, tentando aceitar o acontecimento. Afinal, se os pais estavam felizes, por que não?...
Só a filha continuava de cenho fechado. Em um dado momento, pediu a palavra.
«tudo muito bem, parece que todos estão aceitando esta situação, mas eu não posso concordar, mãe. Que o papai queira se unir a uma mulher um pouco mais velha, tudo bem. Mas eu não posso concordar que você se case com um rapaz da idade dos meus irmãos. Eu não acho...»
Foi interrompida com uma gostosa gargalhada da mãe.
«Minha filha...», continuou rindo abertamente. «Bem, já vi que vocês não entenderam bem a coisa...» Continuando a sorrir, fez um gesto na direção da bela senhora. «Vem cá, querida...»
Deram um beijo afetuoso. A mãe falou, divertida.
«Esta é que é a dona do meu coração, a minha companheira, o meu amor.»

Os seis pares de olhos fixaram-se na cena por uns segundos. Depois, lentamente, dirigiram-se para a outra ponta da mesa, onde o pai e o rapaz simpático, de mãos entrelaçadas, olhavam-se apaixonadamente.



Oswaldo Pereira
Dezembro 2013

8 comentários:

  1. Oswaldo
    Um feliz Natal pra você e Mitu.
    Adorei o conto.
    Zé Correa

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  2. Esse conto é "da hora", hein ? Gostei !
    Fifi

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  3. Isto é que é conto de Natal, o resto é conversa! Aproveito para deixar aqui o meu abraço de Feliz Natal para o contista e sua família!

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  4. maria thereza pinheiro20 de dezembro de 2013 às 00:44

    Vivi cada momento de espera pela surpresa e quase pude sentir os cheiros das delícias da ceia, tão vivo tudo estava.Acho que meu espanto com a revelação da surpresa deve ter sido igual ao da família reunida à volta da mesa.. Impactante!

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    1. Obrigadíssimo, Tetê
      E sucesso para o nosso querido Coral na Missa de Natal. Um grande beijo de Boas Festas

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  5. É o mundo atual, e devemos aceitar que as coisas mudem. Interessante e surpreendente.
    Prende a atenção por todo o tempo que se faz a leitura.
    Abraço de Natal para você, Mitu e família.
    Cleusa.

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  6. Muito interessante mas o final. . . deixou-me sem fala!!!
    Fernanda

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