Um grande abraço para todos! Como bonus, um conto que escrevi há
algum tempo, com muito espírito natalino... Espero que se divirtam.
«Tá chovendo.»
«Eu sei.»
«Vai assim mesmo?»
«Que remédio...»
Ele tinha de ir. A mãe
pedira. A irmã também.
«Quanto tempo leva?»
«Normalmente, umas quatro
horas. Mas, com a estrada molhada assim, mais de cinco».
Ficava longe. E o pior era
o caminho: piso irregular e mal cuidado, curvas, subidas, descidas, sem
acostamento. Fazer o quê...
Era uma reunião de
família. Seria a primeira, desde que saíra da casa dos pais, há onze anos. Eles
haviam permanecido na pequena cidade do interior, onde ele nascera e fora
criado; na mesma casa, assobradada e com quintal, com sua espaçosa sala de
jantar e imensa cozinha, que fora cenário de sua infância e adolescência. E que
agora, ao se preparar para reencontrá-la, saía dos escaninhos da memória e
despejava gostos, cores e cheiros de cafés da manhã de invernos chuvosos, ele,
menino, pouca vontade de ir para a escola; de almoços de domingo, família e
parentes em volta da leitoa assada com tutu de feijão, seu olhar faminto
procurando os olhos da priminha bonita que despertara sua primeira paixão; do
jantar silencioso na véspera de embarcar de vez para a cidade grande.
Ele era o terceiro dos
filhos, o caçula. A irmã morava no Nordeste. Casara, dera dois netos aos
“velhos”, tirara a pressão da descendência de seus ombros e dos do irmão, que
fora para os Estados Unidos há seis anos.
Enquanto jogava poucas
coisas para dentro do saco de viagem, deixou as lembranças inundarem sua mente
e agitarem seu coração. Como seria rever seu pai, abraçar a mãe? De repente, se
deu conta do desleixo com que tratara essa relação, dos telefonemas esparsos, dos
e-mails lacônicos. Com os irmãos
também. Não pudera ir nem ao casamento da irmã, retido por inadiáveis compromissos
profissionais (mas, será mesmo que não poderia ter dado um jeito?). Com o
outro, se comunicava ainda menos (o fuso horário era uma desculpa aceitável).
«Desculpa eu não te levar,
mas você sabe...»
«Eu sei, eu sei,
querido...»
A irmã fora taxativa. Era
só para a família imediata: os pais, ela e o marido, os dois filhos, ele e o
irmão. Os relacionamentos “instáveis”, como ela própria adjetivara, como o
dele, estavam fora. O irmão, que já devia estar voando para o Brasil, também
viria só.
«Beijinho...Devo estar de
volta na terça.»
«Vai com Deus, amor. Liga
quando chegar lá. Tá levando todos os
presentes?»
Presentes de Natal. “Será
que os pais ainda tinham a velha árvore?”, pensou, abrindo o porta-malas do
carro na garagem.
Ficou tentando imaginar
como estariam todos. Mais velhos, claro. Não os via há mais de quatro anos. A
mãe havia feito 55 anos em julho; o pai tinha três a mais. A irmã completara
30; o irmão, 28. As fotos que vira ao longo de todos esses anos não davam para
revelar com precisão as marcas do tempo.
Jantar de Natal com a
família, na noite de 24 de dezembro – este era o convite. A irmã acrescentara:
«papai e mamãe avisaram que querem nos fazer uma grande surpresa. Não tenho a
menor ideia do que é...»
O que seria? Algum
problema de saúde? “Não, não fazia sentido, logo no Natal...”, pensou, enquanto
pagava o sanduíche numa estação de serviço. Olhou para o relógio. Duas da
tarde. Pelos seus cálculos, ainda mais umas duas horas e meia de estrada. Queria
chegar antes de escurecer.
E chegou. Assim que
estacionou o carro, viu a irmã descer pela escada da porta principal.
«Ué, já chegaram?»
«Sim. Conseguimos pegar
uma conexão em Brasília...»
Abraçaram-se efusivamente.
«Você é mesmo um bicho do
mato, hein?... Caramba, faz mais de quatro anos que não aparece, quase não
manda notícia.»
«Que bom te ver, maninha. Uau,
cê tá bonita, mais magra.»
Estava mesmo.
«Que nada... São teus
olhos.»
Foram entrando na casa. Os
cheiros de antigamente vieram prontamente ressuscitar as lembranças soterradas.
Preocupado, perguntou:
«Então, como é que estão
os velhos?»
«Olha, estão ótimos. Faz tempo
que não os vejo tão alegres.»
Não precisou esperar muito
para constatar. A mãe descia para a sala. O abraço foi longo, quase sem
palavras, água nos olhos dela, nó na garganta dele.
«Ô mãe, que saudade...»
Ela segurou-lhe a cabeça,
como fazia desde que ele era menino.
«Que bom que você veio,
filho. Teu irmão já confirmou que chega amanhã de manhã. Finalmente, vamos
passar um Natal juntos, graças a Deus!»
Ele também notou: ela
estava radiante.
«Cadê papai?»
«Foi comprar umas coisas
lá no mercado. Tá chegando daqui a
pouco. Mas, pegue a tua mala; o teu quarto está preparado.»
O quarto.
Voltou no tempo. A estante
com os livros (28 volumes de uma coleção que nunca lera, alguns romances lidos
pela metade, CDs antigos, VHS pré-históricos, jogos eletrônicos antediluvianos,
álbuns de fotos...); a cama dos sonhos, dos pesadelos e dos prazeres
solitários; o painel de cortiça com os instantâneos de uma vida inteira, times
de futebol, namoradas, festas, passeios, pedaços do passado; o armário com o
espelho que o vira crescer, transformar-se de menino em rapaz e de rapaz em
homem e com as gavetas onde guardara suas roupas e seus segredos.
Ficou parado, olhando,
respirando fundo, tragando com volúpia a fumaça entorpecente dos momentos idos,
vividos, esquecidos, que agora voltavam de repente, inebriando-o com os odores,
perfumes e fragrâncias de sua estória pessoal.
Levou algum tempo arrumando
sua pequena bagagem. Depois, desceu.
O pai o esperava com um
sorriso largo e os braços abertos. Primeiro abraço em muitos anos; antigamente,
a cabeça dele ficava muito acima da sua. Agora, era o contrário. O pai brincou:
«Você cresceu ou eu
diminui?»
«Você não me obrigou a
fazer alongamento desde criança? Agora, aguenta...»
Deram uma grande risada. E
se abraçaram de novo.
O pai também estava ótimo.
Qual seria a surpresa?
O lanche foi ligeiro e
frugal. A árvore estava lá, no mesmo canto da sala, as luzes coloridas, as
bolas vermelhas e douradas, a estrela no galho mais alto, a “neve” de algodão
pousado nos ramos. Os sobrinhos corriam em tropel, aos gritos. O cunhado fingia
uma zanga de efeito apenas cosmético. A irmã ainda tentou furar o mistério.
«Então, que surpresa é
esta?»
Os pais entreolharam-se sorrindo.
A mãe continuou cortando mais uma fatia de bolo.
«É surpresa, ora. Primeiro,
temos de esperar a chegada do teu irmão. E a revelação é para amanhã à noite,
na ceia.»
«Poxa, mãe. Que saco!»
«Paciência, minha filha. Tudo
na vida tem o seu momento certo.»
Seus olhos brilhavam. Os
do pai também.
“Só pode ser uma boa
notícia”, ele pensou, enquanto se espreguiçava e deitava na antiga cama.
Acordou com uma barulhada
lá embaixo. Parecia um clarim. E era.
O irmão, só de sacanagem, trouxera
um e agora o tocava, a plenos pulmões, do lado de fora da casa, às sete da
manhã.
Quando ele chegou à sala,
a mãe já abrira a porta e o irmão entrava, triunfante, com um barrete de Papai
Noel na cabeça e um enorme saco vermelho às costas.
«Merry Christmas everybody! É Natal, moçada!... Blém, blém, blém, sinos de Belém... Então, vamo cantar, gente...»
A mãe ria.
«Filho, olha os
vizinhos!...»
Ele parou, levantou a mãe
nos braços.
«Que mané vizinhos... Here comes
Santa Claus, porra!»
O irmão sempre fora assim:
irreverente, brincalhão, a alma das festas. Também sempre fora o mais levado, o
instigador das traquinagens mais ousadas, sempre levando bronca, sempre se
metendo em alguma. Mas,
todos o adoravam e se rendiam à sua irresistível simpatia, seu sorriso
desarmador, seus encantadores pedidos de desculpa.
Estavam todos juntos,
agora.
O dia passou ligeiro. Ele andou
pela cidade, foi até a praça principal, encontrou velhos amigos, velhas
esquinas, velhas calçadas. Foi ao bar onde amarrou seu primeiro porre, uma
garrafa de batida de limão, num Carnaval escondido no tempo. Viu de longe o
cinema do primeiro beijo e o banco de jardim de sua primeira paixão recusada.
À tarde, os três irmãos
ficaram varanda, conjeturando, aproveitando uma pequena ausência dos pais.
«Vai ver, acertaram na
mega Sena», cogitou o irmão.
«Não, não pode ser»,
contestou a irmã. «Se fosse isso, já teriam trocado o carro. Ainda estão com
aquela velharia do Escort. É outra coisa. O que você acha, mano?»
Ele não fazia ideia. «Sei
lá! Será que vão viajar para algum lugar?»
«Não...», retrucou a irmã.
«Já fizeram várias viagens, foram até a China e nunca criaram este suspense. Caraca,
que mistério...»
O irmão deu um grito.
«Já sei! A mamãe está
grávida; eles vão ter outro filho!»
«Não diga besteira, cara. A
mamãe já está na menopausa», sentenciou a irmã.
A tarde escureceu com eles
ainda no alpendre, dando tratos à bola, inutilmente. Sem decifrar a charada,
foi cada um para seu quarto, preparar-se para a noite.
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A Ceia estava
deslumbrante. Os pratos e os talheres eram de um serviço de família, herdado
por umas duas gerações. A toalha fora comprada em França, os copos de cristal
na República Checa, os guardanapos na ilha da Madeira – o que de melhor tinham em casa. O gigantesco peru
estava cercado por uma coorte de travessas com castanhas, saladas, rabanadas,
bolos, presuntos, sonhos, queijos, doces. Um espetáculo de fartura. Dez
cadeiras rodeavam a mesa.
“Dez cadeiras?...”, pensou
ele. Ia perguntar quando o pai espoucou
a rolha do primeiro champagne.
«Bem, meus filhos, meu
querido genro e meus netos. Primeiro, um brinde a este Natal e à felicidade de
estarmos todos juntos». Encheu as taças. Todos brindaram.
«E agora, o segundo motivo
da nossa reunião de família. O que nós queríamos anunciar é que eu e a sua mãe
vamos nos separar.»
Foi como se a Terra tivesse
tremido e o teto desabado. Os seis pares de olhos arregalaram-se e viraram-se
imediatamente para a mãe, sentada ao lado do pai. E ela sorria, calma, tranquila.
Os seis pares voltaram para a figura do pai, que continuou.
«OK, eu sei que pode ser
um choque para vocês, mas não havia outra maneira de dar a notícia. Mas, pelo
amor de Deus, não fiquem tristes. Em primeiro lugar, quero que saibam que esta
decisão foi tomada de comum acordo entre nós, depois de amadurecermos bastante
a ideia, e de que estamos os dois perfeitamente conscientes do que estamos
fazendo.»
Virou-se para a mulher. Ela
levantou-se, segurando sua taça, o semblante sereno. Embora emocionada, a voz
estava clara, quase alegre.
«Conscientes e felizes. Até
porque, este desfecho coroa um processo que veio desenvolvendo-se por um longo
tempo. Os nossos primeiros anos de casados foram dedicados a construir uma família,
criar vocês, educar, dar-lhes um lar, prepará-los para a vida. Pouco tivemos
tempo para nós, para nos conhecermos. Tínhamos casado depois de um noivado
curto. E, mesmo se fosse longo, acho que ninguém se conhece realmente antes de viver
junto, dia após dia, ano após ano. Só quando vocês se formaram e foram embora é
que começamos a procurar o que verdadeiramente nos unia.»
Pôs a taça sobre a mesa,
aproximou-se do marido e colocou a mão sobre seu ombro.
«Com o tempo, verificamos
que, o que realmente nos unia, era só uma grande amizade. Éramos, somos, e
seremos, sempre, grandes amigos. E até achamos que isto seria suficiente para
manter-nos juntos indefinidamente.»
O pai retomou a palavra. Parecia
que haviam ensaiado.
«Mas, acabamos descobrindo
que não é. Como vocês devem saber por experiência própria, uma vida em comum pede
alguma coisa mais. Ao lado do sabor básico da afeição e do companheirismo, ela
exige a pitada de sal do sexo e o tempero do amor. E vimos que estes dois
ingredientes faltavam, por assim dizer, na dispensa da nossa relação.»
Parou para sentir o efeito
da sua figura de linguagem. Mas a plateia estava muda, petrificada, sem
respiração. Continuou.
«Aí aconteceu um evento
mais ou menos previsível. Eu encontrei alguém que preenche esta lacuna, que me
trouxe esses ingredientes e que deseja compartilhá-los comigo pela vida afora.»
Levantou-se e abraçou a
mulher.
«O mais fantástico de tudo
é que, quase ao mesmo tempo, a mesma coisa aconteceu com a mãe de vocês.»
Ela sorriu com ternura.
«É verdade. Eu também
achei uma pessoa maravilhosa e que também me propôs juntarmos os nossos
caminhos. Não é incrível?»
O silêncio continuava
sepulcral. Os netos estavam boquiabertos, o genro arfava, o irmão brincalhão
perdera a graça, a irmã tinha uma pequena lágrima presa nos cílios inferiores. Ele
só pensava: “Que noite de Natal...” O pai retomou.
«Bem, vamos às coisas
práticas. Queria que soubessem que esta casa já foi passada para o nome de vocês.
Antes do final do ano, eu vou para a Itália em lua de mel com essa pessoa e
depois vamos morar em Roma.»
«E eu vou para São Paulo
por uns tempos, com meu novo amor», completou a mãe. E prosseguiu.
«Bem, esta ceia não
estaria completa se os nossos novos parceiros não participassem dela.»
Voltou-se para o marido. «Querido, não quer chamá-los?»
«Sem dúvida! Eles estão lá
fora, esperando a hora de entrar. Venho já.»
A mãe ficou contemplando
as expressões de espanto. Que mais espantadas ficaram quando o pai voltou,
conduzindo um casal composto de um rapaz jovem, na faixa dos vinte e muitos,
bem-apessoado e simpático e uma senhora de cabelos brancos, ainda bem bonita, aparentando
uns sessenta anos. Ambos, um pouco tímidos, cumprimentaram a pequena audiência
familiar. A pedido da mãe, sentaram-se nas cadeiras que ainda estavam vazias.
A ceia começou soturna. Lentamente,
a alegria contagiante dos pais, o genuíno interesse dos recém-chegados em criar
um clima ameno e de paz e o champagne
em profusão levantaram o astral. Embora desconcertados e profundamente
surpresos, os membros da família foram, cada um à sua maneira, tentando aceitar
o acontecimento. Afinal, se os pais estavam felizes, por que não?...
Só a filha continuava de
cenho fechado. Em um dado momento, pediu a palavra.
«Tá tudo muito bem, parece que todos estão aceitando esta situação,
mas eu não posso concordar, mãe. Que o papai queira se unir a uma mulher um
pouco mais velha, tudo bem. Mas eu não posso concordar que você se case com um
rapaz da idade dos meus irmãos. Eu não acho...»
Foi interrompida com uma
gostosa gargalhada da mãe.
«Minha filha...»,
continuou rindo abertamente. «Bem, já vi que vocês não entenderam bem a
coisa...» Continuando a sorrir, fez um gesto na direção da bela senhora. «Vem
cá, querida...»
Deram um beijo afetuoso. A
mãe falou, divertida.
«Esta é que é a dona do
meu coração, a minha companheira, o meu amor.»
Os seis pares de olhos fixaram-se
na cena por uns segundos. Depois, lentamente, dirigiram-se para a outra ponta
da mesa, onde o pai e o rapaz simpático, de mãos entrelaçadas, olhavam-se apaixonadamente.
Oswaldo
Pereira
Dezembro 2013