“Eu te adoro…”
Estas foram as últimas palavras dele, antes que ela
sorrisse, oferecesse o cartão de embarque à funcionária que fazia o controle e
desaparecesse atrás do vidro opaco. Ainda acabrunhado pela saudade, desceu até
o estacionamento, entrou no carro e rumou para casa.
Que agora ficara enorme. Sem ela.
Ligou a TV. 52 polegadas , LED,
como ela tanto insistira. Olhou sem ver
para a tela plana, pendurada na parede como um quadro. Depois de quase uma
hora, desistiu. Nada fazia sentido.
Fome? É… Abriu a geladeira. Lembrou-se do presunto que
comprara na véspera. Um sanduíche; dois. Um resto de Coca Zero, já sem gás. Ela
nunca fechava direito as garrafas. Ele nunca compreendeu porque, já que ela era
tão perfeita em tudo o que fazia.
Comeu. E foi tentar dormir. Sem ela.
Domingo.
De manhã, ela ligou. Só para dizer que havia chegado a
Nova Iorque e que ia direto para a entrevista. Sem emoções na voz; como
convinha a uma executiva que queria vencer na América. Ele repetiu: “eu te
adoro”. Ouviu um clic como resposta.
Por que acabara só para ela? Por que a vontade de
dividir a vida juntos continuara só para ele? Por que só ele tinha agora esta
necessidade de compartilhar o tempo, bom ou mau, azul ou cinzento, esse tempo
que ela agora queria “dar”?
“Vamos dar um
tempo”, dissera ela. Depois de oito anos.
Ele nem percebera os sinais. Talvez eles estivessem
ali, no dia a dia, nas refeições cada vez mais silenciosas, nas frases que
paravam no meio, no carinho ralo, nos grandes hiatos sem sexo. Tudo o que ela
dissera, agora, de uma vez só.
Saiu para a rua. Ciclovia da Lagoa. Gente passando,
carregando seus problemas. “Somos ilhas de problemas num mar de indiferença…”.
Onde ouvira isto? Pedra da Gávea ao longe. A saudade perto, muito perto.
Leblon à noite; chuva fina. Agosto maldito.
O shopping
era branco, o céu era cinzento, o táxi cheirava a cigarro. E se a vida perdesse
o sentido? E qual é o sentido da vida?
Ele sabia qual era o sentido da sua vida. Viver,
para ela, com ela, dela. Dia, mês, ano, antes, depois, durante. Sobre, debaixo,
ao lado…dela. E agora?
Fila de cinema. Nota de cinquenta; “tem menor?”. Gente
conversando na cadeira ao lado. Ela iria ficar irada – “xiiu!”, diria. Cadê
ela?
Segunda-feira.
O frescão estava gelado. Meu Deus, por que mantêm o ar
ligado, mesmo com esta chuva lá fora? Será que o frio lhe é interior, só dele? Será
que só ele, neste ônibus lotado de gente calada que lê jornal, sente saudade,
esta saudade excruciante, mordente, invalidante? Como vai conseguir trabalhar?
O dia escorre entre telas de computador, relatórios,
frases desencontradas, perguntas que ele quer esquecer. “Então, ela já
telefonou? Chegou bem? Quando volta?...” Felizmente, ninguém notou o olhar
vazio, as reticências, os longos “é…”s.
Talvez já estivessem habituados.
De novo a noite. Conseguira sobreviver. A
segunda-feira ia-se transformando num ontem. Os ontens, pensou, são coisas
seguras. Afinal, deles tudo sabemos – até quantos eles são. E os amanhãs?...
Terça-feira.
De manhã, foi à garagem pegar o carro. Mas o perfume
dela ainda estava lá, impregnado no volante, aninhado no porta-luvas. Desistiu;
foi de ônibus.
Na hora do almoço, o celular tocou. Por um segundo,
ainda pensou que poderia ser… Depois, atendeu o telemarketing que lhe queria
convencer das vantagens de… De que, mesmo? Desligou com raiva.
Reunião. A tarde toda. Mal ou bem, ele conseguira
vestir este outro ser que sabe fingir estar atento às discussões, aos long range plannings, aos data shows. É como uma segunda pele, uma
máscara de borracha que esconde o verdadeiro ele que sangra de saudade dela.
Na volta para casa, de relance, um rosto moreno
disparou um choque morno – parecia ela, mesmo cabelo, mesma altura, mesmas
pernas – mas, não era…
Ficou olhando para a capa do CD, no escurinho da sala.
Comera pouco; a cozinha estava uma bagunça. Ela jamais permitiria isso.
Madeleine Peyroux. Ela detestava; preferia Billie Holiday, no original.
Discutiam sempre sobre isto. Agora, não mais…
Quarta-feira.
Olhou pela janela do quarto. Chovia, ainda. Cama por
fazer.
Mais uma vez, não conseguiu enfrentar o carro
perfumado. Estava atrasado, pegou um táxi e foi desmaterializar-se na rotina do
escritório. “Sou um autômato”, pensou, ao dar bom-dia à recepcionista.
No fim do dia, a chuva parara. Melhor. Ou pior? E se vier um daqueles poentes a que
costumavam assistir, abraçados, na pedra do Arpoador? T´esconjuro! Deus queira
que não.
Era noite do pôquer com os amigos de infância. Ir ou
não ir? Com eles, não haveria disfarce possível. Seria ferida exposta, alma escancarada,
tomografia da dor. Deu uma desculpa e não foi.
Quinta-feira.
Solzinho de inverno. Pros lados do mar, nuvens e
gaivotas. Por que não viajava? Tinha férias para tirar, dinheiro não era
problema. E, agora estava livre. Livre, repetiu em voz alta. Soou
estranho, oco, amargo.
O chefe chamou, pela manhã. Eram quase amigos,
trabalhavam juntos há anos. Foi direto: “Tá
com algum problema? Tô te achando
triste”. Desconversou. “Tô meio
resfriado…” Ficou esperando o outro perguntar por ela; o que iria dizer? “Ela foi embora; acabou tudo…” Mas a
pergunta não veio. O chefe era amigo. “Vá para casa, cara. Descanse. E tire
amanhã de folga, também”. Na porta, ainda acrescentou: “Se precisar de ajuda,
ligue. Amigo é pressas coisas”.
Parecia o samba do Aldir Blanc; de que ela gostava…
Almoçou ali mesmo na cidade. Edifício Avenida Central.
Ela tinha levado o lap-top; precisava
comprar outro. E as outras coisas que ela levara, e que ele não podia comprar? Meus sonhos, meus planos, os meus vinte
anos… agora era o samba do Chico; que ela detestava…
Sexta-feira.
Sol e dia imensos pela frente. A faxineira chegou.
“Quando a patroa vem?” Ele quis dizer nunca
mais; não conseguiu – disse: “talvez no final do mês…”
Foi ao supermercado. A listinha de compras emagrecida
pela ausência dela. Carrinho só meio cheio. Bananas, rúculas, pão integral,
queijo branco deixados nas prateleiras, com um pedaço do coração dele.
Finalmente, enfrentou o carro; o perfume já não estava
tão forte. Alívio… e pena. O passado começava a sugar tudo: aromas, sons,
sabores. E a dor, quando iria?
Dirigiu até o Recreio. Procurou a cidade que convivera
com os dois por oito anos. Achou outra. Outro Rio, descolorido, desbotado,
desidratado. Pintura fria de um Rio ascético, sem mais o riso cúmplice de
atravessar a Vieira Souto fora do sinal, as mãos dadas em um show na praia, os
olhos nos olhos do jantar com velas no quiosque, o beijo demorado ao sair da
Estudantina, o calor de Ipanema, a areia de Copacabana, o espelho d´água da
Lagoa, o mistério da Lapa… Onde, este Rio da nossa história?...
Sábado.
Sábado chega. Uma semana. Sente medo. Quantas semanas
mais, até que o tempo encubra tudo com sua pátina amortecida, seu anestésico
macio, sua amnésia salvadora? Como será deglutir diariamente esta pílula ácida
do vazio, sentindo a azia constante da perda queimar o estômago e a alma?
Então, o telefone toca. A voz dela.
“Oi, amor. Afinal, não deu certo aqui…” Pausa.
“Oi, está ouvindo?...”
É claro que ele está.
“Acho que vou voltar… Você quer recomeçar?”
Ele percebe que ela está chorando.
Ele olha pela janela. Há gaivotas e céus azuis, luzes,
sons de sinfonia; há brisas, canções, crianças, namorados. E o Rio voltara a
ser o Rio dele e dela.
Oswaldo Pereira
Outubro 2013
Outubro 2013