Todo mundo tinha de saber dançar.
É claro que estou falando de um tempo em que dançar
ainda não queria dizer perder, ser derrotado, malograr-se. Dançar, nesses tempos que a Rede Globo resolveu
rotular de Anos Dourados era, para soar mais sofisticado, de rigueur, um must.
Era ainda tempo dos bondes (para a galera nova: ante diluviano meio de transporte que andava sobre
trilhos, ligado uma rede elétrica e que, por ser barato, ganhava a preferência
dos estudantes e de suas parcas mesadas). Na parte interna, ao alto, havia
um lugar para propaganda (os reclames),
cartazes bem arranjadinhos que apregoavam coisas como o Rhum Creosotado, a Emulsão
de Scott, o Regulador Xavier. Mas havia um que mexia com as entranhas de
imberbes tímidos como eu. Ao lado de um desenho sugestivo de um par
elegantemente vestido e enlaçado entre
cifras musicais, vinha a frase-desafio, o repto-bofetada: Quantas oportunidades você perdeu
por não saber dançar? (e aí, dançar era o oposto de perder...)
Não saber dançar era o ostracismo humilhante nas
reuniões festivas, o anátema cruel que relegava o pobre adolescente aos desvãos
das varandas desertas ou à triste sina de ficar junto de pais e avós, ouvindo toda
sorte de comentários zombeteiros. “Fulaninho
é muito acanhado...”, diziam, com o desprezo dedicado a um leproso.
E, atenção, jovens de hoje. Dançar não era o
bamboleio individual que, desde o advento da separação de corpos no ritual da
dança, cada um improvisa em frente ao seu par. Não há regras; basta se chacoalhar
com o meneio mais próximo possível da batida da percussão e pronto. Naquela
época, não. Os corpos se juntavam, e tinham de mover-se na mesma direção, no
mesmo ritmo, com a mesma coreografia. As damas tinham de ser levadas com
precisão e ritmo, os obrigatórios volteios executados com leveza e técnica, sob
pena de acontecerem encontrões ou (oh! vexame
dos vexames) pisarmos no pé das nossas partners.
Não havia espaço para embromações. Sabia-se ou não.
E, mesmo sabendo, mesmo depois de, a duras penas,
tendo como professora uma prima mais velha, às vezes a própria mãe, ter
aprendido os rudimentos de uma valsa (ah!
os rodopios, cada hora para um lado), de um samba (cheio de truques, ainda mais se fosse samba puladinho, um estágio mais avançado,
tipo faixa preta em judô), de um baião (moleza, um prá lá um prá cá) ou do misterioso bolero (aquele, o da paradinha maliciosa), havia a mais decisiva prova de coragem da
época, o teste que separava os meninos dos homens – tirar alguém para dançar.
Os salões de baile tinham, no começo da festa e aos
olhos dos pretendentes a dançarinos, o aspecto de um campo de batalha do tempo
da Idade Média. As moças de um lado, os rapazes de outro. No meio, o vazio, a
terra de ninguém. Sabiamente, os organizadores da festa sempre combinavam com
pares mais experimentados, casais de noivos, cônjuges, para abrirem o baile.
Não havia hipótese para qualquer de nós fazê-lo. Havia o medo pânico de sermos
recusados (a famosa tábua) ou de não acertarmos com o ritmo (isto é samba ou rumba?) e sermos expostos ao ridículo de uma
performance execrável aos olhos do mundo.
Só depois do salão cheio, seguros do anonimato da ação e encorajados por
uma dose de cuba libre, partíamos para a
suprema aventura.
Do lado feminino, os temores eram outros. O de
ver-se a braços com um par desajeitado, grosseiro ou com mau hálito. De ter de aturá-lo até o
intervalo entre as músicas. Ou, destino pior – o de não ser convidada, de
passar a noite sentada, o terrível e cruel “chá de cadeira”.
Anos Dourados, sei...
Mas, com o tempo, a confiança chegava. Convencidos
de sua destreza, dançar transformava-se pouco a pouco para os jovens num fantástico
passatempo, no despontar da adrenalina de grandes romances, antessala de paixões solapadas, até embalo
para futuros casamentos. Quem viveu,
viu. E ouviu. Vitrolas hifi tocando elepês do Ray Conniff. Orquestras
completas animando os bailes de formatura dos longos e dos smokings...
Outro mundo, outro século. Outro milênio...
Oswaldo
Pereira
Setembro
2013