terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

EFEITO CHINA

Em 1994, participei, na sede brasileira do Citibank em São Paulo, de um encontro com o Sr. John Reed, à época Presidente do Citicorp e um dos executivos mais influentes do planeta. Éramos uns vinte convidados, cada um representando seu setor, num quadro amplo que reunia praticamente todos os principais componentes das áreas industrial, comercial e financeira do país. A ideia era dar ao administrador do mega banco multinacional uma visão o mais completa possível da situação político-econômica do Brasil.

John Reed era um tipo naturalmente simpático, com uma cara de garoto que camuflava o fato de ter mais de cinquenta anos. Falava algum português, um bom espanhol, pois passara boa parte de sua idade escolar aqui e na Argentina, e, naquela tarde, desempenhou seu papel de anfitrião com maestria, demonstrando um conhecimento aprofundado do que se passava por estas bandas.

Após cada um de nós ter discorrido sobre as atividades de sua área, ele resolveu falar um pouco sobre sua rotina de trabalho, que lhe impunha viajar ao exterior durante quatro meses em cada doze, para visitar os países onde o Citibank estava presente, o que era o mesmo que dizer - o mundo.

E disse-nos ele, que, no ano anterior, fora pela primeira vez à China, onde Citibank acabara de instalar a primeira agência. Dada a importância do evento, considerado pela opinião internacional como um sintoma de que o país se desgrudava da cartilha ortodoxa do comunismo, convidaram-no para uma entrevista com o então primeiro-ministro chinês, Deng Xiaoping.
Foi nessa reunião, logo após serem cumpridas as formalidades iniciais, que Xiaoping surpreendeu Reed com a seguinte pergunta:
“Mr. Reed, o senhor já deve ter percebido que a China marcha para o Capitalismo. Como um dos maiores representantes do Capitalismo mundial, o que o senhor tem para aconselhar-me?”

Totalmente off guard, Reed falou a primeira coisa que lhe veio à cabeça:
“Senhor Primeiro-Ministro, não deixe que o automóvel tome conta da China.”
Vendo a nossa divertida estranheza com a resposta dada (não tão divertida da parte do representante das montadoras), ele esclareceu:
“Eu só ficava imaginado o tamanho da sucata de pneus se os chineses resolvessem adotar o lema de Henry Ford na década de 1920 – cada americano, um carro”.

Desde esse dia, eu passei a perceber que toda atividade comportamental ganha nova dimensão quando a aplicamos à China. E que tudo o que pensamos para o futuro da Terra não será verdadeiro se não incluirmos o fator chinês na equação.

Todo mundo conhece aquela historinha, presente em quase todos os almanaques “Você sabia?...” de anos atrás, informando que, se todos os chineses subissem num banco de um metro de altura e pulassem para o chão ao mesmo tempo, o impacto faria a Terra deslocar-se de seu eixo. Embora impraticável, dá para pensar.

A China deve ultrapassar brevemente a marca de 1,4 bilhão de habitantes. Quer brincar um pouco com os números? Se apenas 10% da população resolvesse tomar uma garrafa de vinho por semana, a demanda representaria 30% da produção semanal da bebida em todo o mundo. Se decidissem fumar um charuto, não haveria suficiente para todos, mesmo se a fabricação mundial lhes fosse dirigida exclusivamente. É claro que estes sofisticados hábitos estão ainda muito além do dia a dia do cidadão comum, e talvez nem um décimo dos chineses os adquirirá num próximo tempo. Mas, e se?...

Desde 1978, o país cresceu 90 vezes em termos econômicos. Entre 1981 e 2001, a taxa de pobreza da China caiu de 56% para 8%. Hoje, há 800 milhões de telefones celulares e 120 milhões de internautas. Mais de 10 mil PhD´s graduaram-se em 2009 e, no mesmo ano, 121 mil trabalhos científicos foram publicados. Os conservatórios de música formaram, no ano passado, 30 mil alunos em nível de concertista; é provável, portanto, que cada vez mais estaremos aplaudindo pianistas, violinistas e maestros chineses, assim como já hoje verificamos divertidos que desde monitores até meias de lã estamos sempre comprando algo “made in China”.

Por fim, em 2011 foram vendidos naquele país 40 milhões de carros. E, premonitoriamente, nos seus 65 mil quilômetros de estradas morreram 62.000 pessoas. Acho que nem Reed, preocupado com as sucatas de pneu, poderia prever isto. E estamos só começando...
Oswaldo Pereira
Fevereiro 2013

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

D. JOÃO VI, O INJUSTIÇADO


D. Maria I, Rainha de Portugal, teve dois epítetos. Foi chamada de a Viradeira, pelo fato de ter desfeito, assim que subiu ao trono, grande parte da obra política e administrativa do conselheiro de seu pai, o Marquês do Pombal. Mas, para a História, ficou mais conhecida como “a Louca”, por ter sucumbido a uma progressiva demência, possivelmente causada por uma varíola contraída aos 17 anos. No fim da vida, só saia à rua amparada por um séquito de aias. O povo, ao vê-la assim passar, dizia: “Lá vai D. Maria com as outras...”. O dito que daí se originou – Maria vai com as outras – acabou “colando” na figura de seu filho e sucessor, D. João.
O historiador português Sérgio Luís de Carvalho conta que, durante seu reinado, corria por Lisboa uma quadrinha popular:

Nós temos um Rei
Chamado João
Faz o que lhe dizem
Come o que lhe dão
E vae para Mafra
Cantar cantochão

Sonso, disforme, indeciso, sujo, inexpressivo, irresoluto, avarento, ridículo. Isto é apenas parte da coleção de adjetivos que os cronistas da realeza, do início do século XIX até hoje, atribuíram a D. João VI, rei de Portugal durante um dos mais conturbados períodos de sua existência. E acabaram por eternizar a imagem de um homem inseguro, deselegante, avesso à higiene, sempre a roer coxinhas de frango, com ar pasmado a protelar decisões e a recusar as responsabilidades do cargo.

Eu discordo. Senão, vejamos.

Nascido e criado para não ser rei, o infante João foi educado à sombra de seu irmão mais velho, José, este sim primogênito e apetrechado para o trono desde a tenra idade. Mas, numa sina com ares de maldição, que acometeu a maioria das sucessões palacianas desde a baixa Idade Média, o primogênito morreu em 1788, aos 27 anos, justamente na hora em que a decadência psicológica da Rainha já afetava a rotina do poder. João tinha 21 e, há três anos, casara-se por imposição dos arranjos políticos da época com a filha do futuro Rei Carlos V de Espanha, uma menina irascível chamada Carlota Joaquina. Sem sequer ter tempo para preparar-se, viu-se arrastado inexoravelmente para o centro de um turbilhão de forças que açoitava como um vendaval os destinos de seu país e de toda a Europa. Em 1792, foi declarada a incapacidade de D. Maria. João herdava o comando. Se repararmos bem na data, esse foi o ano de um dos mais determinantes acontecimentos da História moderna: a Revolução Francesa.

As ondas de choque causadas pelo esfacelamento da monarquia na França reverberaram pelo continente europeu, fazendo tremer os alicerces do absolutismo, liberando forças reacionárias e semeando o medo em todas as casas reais. Evidentemente, Portugal não poderia ficar imune à agitação que se seguiu. Nos anos seguintes, até 1799, quando foi proclamado Príncipe Regente, D. João teve de enfrentar poderosas dissensões internas, administrar as pressões externas e, principalmente, enfrentar o ânimo conspiratório de sua mulher, que sonhava com a hegemonia espanhola sobre toda a península ibérica.

No mesmo ano em que virou Regente, Napoleão assumiu o poder em França. O alinhamento histórico de Portugal com a Inglaterra colocou-o em rota de colisão com as ambições bonapartistas de dominação. A disputa entre franceses e ingleses agia sobre D. João e o seu país como as paredes de um torno, apertando-o entre as cruéis alternativas de ser invadido ou dever caros favores. Os Tratados de Tilsit e Fontainbleau, impostos pela França em 1805 a uma Europa vencida pelas armas, selou o destino da nação portuguesa. Mesmo assim, o Príncipe Regente procurava ganhar tempo, ora aparentando concordar com o apoio inglês, ora indicando que entregaria a coroa ao invasor. Indeciso? Bem, quem não seria? Era do futuro do Reino que se tratava e a decisão final era sua. Para piorar as coisas, ainda se viu a braços com uma conjura palaciana para apeá-lo do poder, urdida por ninguém menos que D. Carlota Joaquina.

Em novembro de 1807, não há mais tempo para contemporizações. Junot está na fronteira, a horas de marcha de Lisboa. Para cem por cento dos historiadores, aí D. João fugiu para o Brasil.

Fugiu? Peraí. Naquele novembro, 15.000 pessoas (deixem-me repetir o número por extenso: quinze mil pessoas) entre a família real, membros da corte, a nobreza, o clero, famílias inteiras de fidalgos, comandantes militares, escrivães, notários, empregados de toda a sorte atravessaram o oceano. E, junto com elas, o tesouro real, grande parte da biblioteca e da pinacoteca régias e da documentação de Estado. Pensem um pouco na logística envolvida, no plano organizacional de uma empreitada deste calibre. Não estamos falando de um Rei que botou o chapéu na cabeça e embarcou no primeiro bote que encontrou. Estamos falando, sim, da transferência de uma corte inteira para o outro lado do mundo, num tempo em que travessias oceânicas eram mais perigosas que uma viagem espacial. Um fato inesperado, incomensurável, inédito. E uma espetacular jogada política.

Com a mudança do cetro para a América, D. João ludibriava Napoleão. O que Junot encontrou, ao chegar à capital abandonada, foram algumas caixas largadas à beira do cais. A posse da coroa, que significaria o mando sobre o império português de além-mar, escapara-lhe.

A vida da corte nos trópicos já foi motivo de centenas de livros, peças, estudos, pesquisas e piadas. Faz tanto parte do folclore brasileiro como as lendas indígenas e os cancioneiros regionais e é, até hoje, mote inspirador de muito samba-enredo. Primeiro rei absolutista da História a pisar numa colônia, D. João foi recebido como um deus. O que se esperava era que, vencido o inimigo francês, retornasse ele célere para a Europa, reafirmando a submissão do Brasil e fechando o capítulo como uma digressão temporária e apenas conveniente. Todos sabemos que não foi o caso. Sua prolongada permanência, alargada por muitos anos após a derrocada de Bonaparte, marcou o início do processo de emancipação do futuro país. O rei português apaixonou-se pelo novo mundo e tratou de dar a uma preguiçosa aldeia à beira mar os alicerces que transformariam o Rio numa metrópole, sede de um Império e o Brasil numa pátria em gestação.

Foi só quando os acontecimentos em Portugal o exigiram que partiu. Com uma percepção rara para um monarca europeu, intuiu que aqueles alicerces haviam disparado um processo irrefreável de independência. Outro qualquer teria tentado sufocar o anseio, convocado tropas, prendido os líderes, iniciado uma guerra. Ele não. Num exemplo magnífico de clarividência, resolveu cooptar a iniciativa, instruindo Pedro, seu primogênito, a tomar a frente do movimento. Podem olhar seus livros de História. Não há, em todo o mundo, outro caso em que a independência de uma colônia tenha sido feita pelo filho do rei do poder colonizador com a total concordância deste.

A mesma clarividência exibiu ao voltar para Portugal, logo entendendo que o absolutismo estava com os dias contados e assinando a Constituição Liberal. E isto acabaria por lhe custar a paz que sempre almejava e a vida. A mulher e o filho Miguel (paternidade, aliás, sob disputa) usariam de todos os meios, desde intrigas até insurreições armadas, para depô-lo. Ele resistiu. Até março de 1826, quando, após alguns dias passando mal, morreu no Paço da Bemposta, em Lisboa. Recentemente, análises em suas vísceras confirmaram que foi envenenado por cavalares doses de arsênico. Não há provas, mas todas as suspeitas recaíram sobre Carlota Joaquina.

“Foi o único que me pregou uma peça”. Esta frase foi dita por Napoleão, em seu exílio final em Santa Helena, sobre D. João VI. Vindo de quem veio, é um forte argumento para passarmos a olhar este rei, a quem muitos chamaram de “desgraçado”, sob outra luz.


Oswaldo Pereira
Fevereiro 2013


  



  



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

PRECIOSA CONCISÃO



É tempo de Abraham Lincoln. Toda vez que Steven Spielberg escolhe um tema, o assunto ganha proeminência mundial. Dinossauros revividos, extraterrestres desgarrados, Oskar Schindler, o soldado Ryan, e até o cartoon Tintin, invadem a mídia impulsionados pelo sucesso das suas produções cinematográficas.

Não que o Presidente americano precise disto para melhorar sua estória. É uma das figuras mais emblemáticas de seu país, dirigindo-o durante o seu mais crucial período, levando-o ao precipício de uma sangrenta guerra civil para, de lá, extrair uma nação amadurecida pelo sofrimento e disposta a defender os princípios pelos quais havia sido criada.

Como sempre, o filme (Lincoln) é um blockbuster, milhões de dólares de trabalho esmerado, elenco de primeira e com doze indicações para o Oscar. Como acho que conheço os humores da Academy, depois de uns bons quarenta anos assistindo religiosamente à cerimônia de premiação, desconfio que três, pelo menos, são “barbada”: melhor filme, melhor ator (Daniel Day-Lewis) e melhor roteiro (do “cobra” Tony Kushner).

Entretanto, por concentrar a narrativa nos últimos quatro meses de vida do personagem-título, o filme aborda apenas de passagem (logo no início, alguns soldados que dialogam com o Presidente citam algumas frases) uma das mais extraordinárias manifestações intelectuais de Lincoln – o discurso que ele proferiu no dia 19 de novembro de 1863, em Gettysburg, na cerimônia de consagração do local onde estavam sepultados os milhares de soldados mortos na célebre batalha.

Fora uma programação longa, com orações, música sacra, várias intervenções. Só o pronunciamento do senador Edward Everett, que precedeu a fala do Presidente, levara mais de duas horas. As pessoas ainda se ajeitavam na multidão, procurando um ângulo melhor para ver Lincoln, quando ele levantou-se e, em pouco mais de dois minutos, leu o seu discurso e sentou-se. O estranhamento foi geral. Teria ele esquecido o resto? Sentira-se mal? Ele próprio, horas mais tarde, no trem que o levava de volta a Washington, tinha a sensação de que o seu speech fora um fiasco.

Mas quando, nos dias seguintes, os jornais publicaram o sucinto texto, as pessoas descobriram o enorme significado das suas palavras, que a preciosa concisão de Lincoln havia condensado em menos de uma página.

É a mais curta mensagem oficial de um Presidente de todas as épocas e de qualquer país. Mas, é uma das mais conhecidas da História e uma das mais inspiradoras de todos os tempos. 

Aí vão ela e a sua tradução.

 Four score and seven years ago our fathers brought forth on this continent a new nation conceived in liberty and dedicated to the proposition that all men are created equal.
Now we are engaged in a great civil war, testing whether that nation, or any nation so conceived and so dedicated, can long endure.  We are met on a great battlefield of that war.  We have come to dedicate a portion of that field, as a final resting place for those who here gave their lives that that nation might live.  It is altogether fitting and proper that we should do this.  But, in a larger sense, we can not dedicate, we can not consecrate, we can not hallow, this ground.  The brave men, living and dead, who struggled here, have consecrated it, far above our poor power to add or detract.  The world will little note, nor long remember what we say here, but it can never forget what they did here.  It is for us the living, rather, to be dedicated here to the unfinished work which they who fought here have thus far so nobly advanced.  It is rather for us to be here dedicated to the great task remaining before us – that from these honored dead we take increased devotion to that cause for which they gave us that last full measure of devotion – that we here highly resolve that these dead shall not have died in vain – that this nation, under God, shall have a new birth of freedom – and that the Government of the people, by the people, for the people shall not perish from the earth.”  

Há oitenta e sete anos, nossos pais criaram neste continente uma nova nação, concebida em liberdade e dedicada ao princípio de que todos os homens são criados iguais.
Hoje, estamos engajados numa grande guerra civil, verificando se essa nação, ou qualquer nação assim concebida e assim dedicada, pode perdurar por muito tempo. Estamos aqui reunidos num grande campo de batalha desta guerra. Nós viemos para consagrar uma porção deste campo como lugar de repouso àqueles que aqui deram suas vidas para que aquela nação pudesse subsisitir. É inteiramente adequado e apropriado que assim o façamos. Mas, num sentido mais amplo, nós não podemos dedicar, não podemos consagrar, não podemos santificar este chão. Os bravos homens, vivos ou mortos, que aqui lutaram, o consagraram muito acima do nosso pobre poder de somar ou subtrair. O mundo pouco notará, nem se recordará por muito tempo, do que aqui dissermos, mas jamais se esquecerá do que eles aqui fizeram. Na verdade, nós, os vivos, é que temos que nos dedicar à inacabada missão que aqueles que aqui combateram tão nobremente iniciaram. É para nós os vivos, na verdade, a missão de nos dedicarmos à imensa tarefa que temos pela frente – que destes honrados mortos nós herdemos a imensa devoção à causa pela qual eles nos deram a sua última e total medida de devoção – que aqui decidamos firmemente que eles não morreram em vão – que esta nação, sob Deus, tenha um novo nascimento de liberdade – e que o Governo do povo, pelo povo, para o povo não desapareça da Terra.
Genial, não?

Oswaldo Pereira
Fevereiro 2013

domingo, 10 de fevereiro de 2013

DÁDIVA








Nunca se saberá ao certo. Se for verdade que todas as mais geniais invenções nasceram de algo que deu errado, fica-se imaginando qual sequencia de atos falhos determinou que o homem esmagasse as primeiras uvas, deixasse o líquido fermentar, e decidisse bebê-lo.
Qualquer que tenha sido o motivo, acaso, descuido ou sorte, essa feliz coincidência, que deve ter ocorrido por volta de 7000 a.C. à sombra do Cáucaso, mudou dramaticamente a maneira de a humanidade tratar duas de suas funções mais básicas – beber e comer.
 Atravessando a Ásia Menor, levada pela marcha da civilização, a prática aprimorou-se e foi conquistando mesas e hábitos, dos mais simples aos mais sofisticados, dos mais profanos aos mais sagrados. Deu origem a, pelo menos, um deus mitológico, regou vários rituais, tornou-se indispensável em todas as celebrações, das bacanálias à Última Ceia.
Hoje, seja na mais modesta tasca ou no mais real dos salons, colorindo copos de vidro ou cálices de cristal com cores que vão do suave amarelo ao carmim rútilo, todo vinho tem sempre sua história para contar.
Porque, das planícies de onde nasceu até estes primórdios do terceiro milênio, o processo descoberto talvez sem querer passou por muitos aperfeiçoamentos. Atualmente, é uma arte, cujos artífices procuram o melhor casamento entre cepa, solo e sol, e fazer com que dele surja a verdadeira voz do terroir, a inquestionável alma do vinhedo. E, é só o começo.
A partir daí, o caráter final do líquido que vai ser aprisionado nas garrafas e entregue a um consumidor, cujo ávido paladar pode estar do outro lado do mundo, vai ser produto de várias escolhas. Ele poderá ser um varietal egoísta em sua individualidade, ou um concerto de castas e famílias de uvas, em combinações incalculáveis. Poderá estagiar por períodos diversos em contato com madeiras de outros países. Dependendo dos caprichos do tempo, talvez nem tenha nome em anos maus. Viajará muito ou pouco, bem ou mal. Será guardado com carinho e preceito ou abandonado à sua sorte.
Estas são as histórias que ele contará, a você, no momento em que tirar a rolha, deixar que ele respire o novo ar; no ponto em que ele vazar voluptuosamente para dentro do seu copo; no instante em que você sentir seu perfume, examinar sua cor; na hora em que ele tocar os seus lábios.  
E, se o que ele tiver para contar o fizer sorrir, feche os olhos e agradeça a todos os seus deuses pela dádiva.  

Oswaldo Pereira
Fevereiro 2013

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

E NÃO ACABOU...


Pois é. Mais uma vez, foi só uma profecia. Furada. Como todas as outras, cometas assassinos, asteroides apocalípticos, ano 2000, maldições, pestes, holocausto nuclear, terremotos e tsunamis. Desta vez, já meio escaldada, a maioria desdenhou, deu uma de esclarecida.

“Eu? Claro que não, gata. Acha que eu sou otário?”

“Que é isso, chefe. Já sou crescidinha para acreditar nesta baboseira.”

Mas, e na hora em que, na véspera, o relógio se aproximou solene da meia-noite, será que todo mundo segurou as pontas com a mesma galhardia? Mais alguns minutos, e o dia 21 iria começar. E se os sacanas dos maias estivessem certos? E se, desta vez, a coisa fosse para valer, o mundo desintegrando-se numa bola de fogo, os céus enchendo-se de fuligem atômica, a grande onda engolindo prédios, ruas, vidas...

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Ela acorda. Estende o braço para o lado, mas a outra metade da cama está vazia.
«Zé?...»
Nada. Ela vê a barra iluminada da fresta como uma régua de luz na escuridão.
«Zé?... O que cê tá fazendo aí no banheiro?..»
Silêncio. Ela levanta-se, tropeça no chinelo.
«Merda!..»
Vai até a porta. Força o trinco. Está trancada.
Bate duas vezes, devagar.
«Zé...tudo bem?...»
Um barulho no trinco. Ela empurra mais um pouco. Dá um grito.
«ZÉ!...»
O marido está nu, sentado no ladrilho do chão em posição de lotus, velas em profusão em cima do lavatório, da privada, do cesto de roupa, um pau de incenso queimando num pequeno copo azulado. Ela grita novamente.
«ZÉ! O que é isso?! querendo botar fogo na casa?»
Ele volta o rosto para a porta. Está trêmulo, com os olhos cheios d´água.
«Ai amor... é quase meia-noite... amanhã é 21... vai acabar, meu Deus, vai acabar...», soluça.
Ela não quer acreditar no que vê.
«Zé... você surtou?... Hoje mesmo lá no bar você se pavoneou para os seus amigos dizendo que isso de acreditar no fim do mundo era coisa de viado. Até chamou o Manoel de babaca quando ele tentou argumentar que os maias...»
«É... eu sei...mas bateu agora uma tremenda paura. E se os caras estiverem certos?...vamos morrer todos... ah! meus santos Cosme e Damião, meu São Jorge, valei-me pelo amor de Deus». Lágrimas escorrem pelo rosto contraído. Ela se exaspera.
«Zé, para com isso, cara! Que coisa idiota. Apaga estas velas antes que aconteça um desastre. Está enchendo o quarto com esse cheiro de igreja, cacete». Tenta puxá-lo pelo braço. Ele resiste.
«Não, me deixa ficar aqui. Tenho de rezar, pedir perdão pelos meus pecados. Não vê que amanhã é o Dia do Juízo Final?». Ela fica olhando para ele, abanando a cabeça.  
«OK, se você quer ficar aí em vez de dormir como todo mundo normal, fica. Que ridículo...»
Bate a porta com raiva. “Não vou mais conseguir ir para a cama com esse maluco aí no banheiro...”, pensa, contrariada.
Vai caminhando até a sala. No escuro, o relógio digital da aparelhagem de som informa que são 23:55. Caminha até a janela. Do sexto andar onde mora, ainda consegue ver, entre dois prédios, um pouco da praia e da imensa noite, pairando sobre o silêncio que vem das ruas. Era como se o tempo tivesse parado. Ela olha de novo para o relógio. 23:59. De repente, uma estrela cadente risca o céu escuro.
Ela volta correndo para o banheiro. Abre a porta num rompante.
«Zé...ZÉ...chega um pouco prá lá e acende mais duas velas, meu amor...»
Oswaldo Pereira
Fevereiro 2013

PALAVRA ESCRITA


Quando fiz 13 anos, em meio a caixas de soldadinhos, bolas de futebol, revólveres de brinquedo e times de futebol de botão, eu ganhei um livro. Um só, não. Dois. Eram os dois grossos volumes d´OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES, última obra infantil de Monteiro Lobato e meu primeiro contato com ele e com a literatura. Foi só depois que todos foram embora, na casa revirada do avesso para desespero de minha mãe, que os achei. Estavam soterrados debaixo da tralha festiva de caixas semi despedaçadas e papéis de embrulho, com manchas de Coca Cola e gordura desenhando sua decoração de fim de festa. Haviam sido relegados ao ostracismo instantâneo dos presentes indesejáveis. Livros, junto com roupas, eram tudo o que não interessava e um olhar de enfado ao recebê-los era reprimido com inaudito esforço por severas admoestações paternas.

Não me lembro o que me inspirou. Quem sabe um raio cósmico vindo de uma estrela longínqua, varando o ar quente de uma primavera carioca, abrandado pela noite quieta. Mas, ajeitando-me na cama, peguei o primeiro volume – que larguei somente quando virei a última página e olhei para a manhã clareando Copacabana. No início de uma adolescência de revelações, eu havia definitivamente recebido uma das boas.

Eu havia sido enfeitiçado pela palavra escrita, pela magia que operava ao transmitir uma imagem, para fazer meus olhos verem, não um batalhão de caracteres negros sobre um fundo branco, mas um bosque no Peloponeso, meu nariz sentir, não o cheiro do papel impresso ou da cola que unia as páginas, mas o de um carneiro assando num braseiro nos campos da Tessália. Os diálogos não eram mais parágrafos com um traço horizontal à frente. Eu podia OUVIR Pedrinho contando histórias do Sítio para um Hércules encantado, a voz grave do Visconde, os gritinhos da Emília. Magia.

A segunda revelação veio anos mais tarde, sem o superlativo que a adolescência empresta a tudo, mas com o choque desagradável de uma traição. Ainda no tempo da TV em preto e branco, uma emissora, não me lembro se já era a Globo, resolvera encenar os contos de Lobato. E, de repente, eu me vi frente a frente com os personagens que me haviam acompanhado durante anos, fervilhando em minha mente pela leitura dos livros e corporificados pela minha imaginação. Para meu horror, não eram os mesmos!  Representados por atores escalados pela direção do programa, aqueles não eram os meus companheiros de aventuras; o Picapau Amarelo que aparecia na telinha não era o cenário que nascera nos meus treze anos. A história até se parecia com a que eu lera, mas não tinha as mesmas nuances, a mesma perspectiva mágica e não era vivida como eu a imaginara. Aos pouco, acabrunhado pelo embuste de que me sentia vítima, fui percebendo a intrincada mecânica da comunicação entre o escritor e o leitor.

Escrever não é uma arte gráfica. O escritor não oferece uma fotografia, nem pincela seus escritos numa tela. Ele pinta, ou tenta pintar, com palavras. Ele descreve aquilo que entende ver, e tenta fazê-lo da maneira mais fiel que pode. Fiel à sua visão. Ele concebe uma cena, e depois a codifica em palavras, numa transmutação de ideias em caracteres, de ação em gramática, de imagem em sintaxe. Usemos o exemplo mais simples. Na hora em que ele escreve: “O ceú estava azul”, ele certamente está visualizando, ou até mesmo vendo, um determinado céu e um determinado azul. É o céu dele, que só ele vê naquele momento ou que guardou num escaninho da memória de uma experiência visual sua, antiga ou recente.

Assim transmutada em palavras, a imagem concebida pelo escritor, depois lida e entendida, vai de encontro à mente do leitor para ser descodificada. O cenário aí, entretanto, vai ser montado por outro arquivo de memórias, por outras experiências sensoriais, por céus e azuis diferentes, talvez de outros paises e outras épocas, que compõem o imaginário do leitor. Dificilmente, os panoramas serão iguais.

Partindo para mensagens mais complexas e mais abstratas, como expressões de sentimentos, definições de personalidades e de propósitos, dissecação de emoções, o afastamento entre as duas realidades,  a do escritor e a do leitor, pode agravar-se. Já presenciei discussões entre pessoas do mesmo nivel cultural e informativo em que defendiam apaixonadamente compreensões diametralmente opostas de um mesmo livro. Ou o lugar comum do “gostei do livro mas detestei o filme”, e vice-versa.

Não há como ser diferente. Não existe, e não existirá nunca, a descrição inviolável, o fraseado fotograficamente fiel, a transmisão, por palavras, da imagem pura. Isso pertence ao reino dos cineastas, dos escultores clássicos, dos fotógrafos e dos pintores ultra-realistas. Qualquer escritor sabe, sempre, que a imagem acalentada por ele e transmitida com fidelidade canina ao que ele chama de real, será explodida, distorcida, estilhaçada e retorcida milhares de vezes e nunca será a mesma nos olhos da imaginação de cada leitor.

Mas, o que realmente interessa, é a transmissão em si. A mola mestra que impele algumas pessoas a escrever é o desejo febril de compartilhar sensações concebidas nos volteios de seus neurônios, mesmo se através de um meio tão traiçoeiro como as palavras. E torcer para que pelo menos o fundo, se não a forma, o sentido, se não o cenário, sejam processados pelo leitor na mesma medida e no mesmo alcance da mensagem que ele tanto sonha repartir.

Por isso, desde aquela noite morna de Copacabana, sigo fascinado pela magia dos livros e pela arte da escrita. Fascinação que, de uns tempos para cá, transbordou os diques de minha censura e acabou por permitir a edição de dois livros. E, sem conseguir estancar seu fluxo, a criação de alguns contos que reuni num site. O desejo, entretanto, continua intenso e urgente, a ponto de burlar mais uma vez certos cânones pessoais, como o de nunca encher a paciência de ninguém, e me impelir irresisitivelmente a enviar meus escritos a amigos resignados, pelo que se convencionou chamar de correio eletrônico.

A proposta, afinal, é simples. Se tiverem tempo, leiam. Se gostarem, guardem para vocês ou divulguem. Se ainda puderem, comentem. Se não tiverem tempo ou vagar, ainda é mais simples. Selecionem a mensagem e cliquem em “lixeira”. Dura menos de dois segundos e ninguém ficará chateado.

Oswaldo Pereira
Fevereiro 2012