quarta-feira, 8 de julho de 2020

LEMBRANDO UM CONTO



Vivemos num deserto de assuntos. Ou melhor, os que perduram e se repetem já exauriram sua capacidade de surpreender, de criar o novo, de fazer renascer atenções. Há semanas que os noticiários recitam ad nauseam os mesmos mantras. Pandemia, fake news, revisionismo histórico. Cada vez mais... do mesmo. A Humanidade parou. O motor da criatividade e da descoberta está engasgado, rateando num ram-ram estéril.

Sem alternativas, nem estórias para contar, resolvi desenterrar um velho conto que escrevi em abril de 2013, quando este desestimulante blog engatinhava seus primeiros passos. Talvez tenha tudo a ver com o amortecido momento que atravessamos. Ou talvez não, mas, pelo menos, ele fala de esperança, coisa de que estamos precisando...

Aí está:

“A vila dormia. Como sempre dormira, desde seus primórdios, desde que as pequenas cabanas haviam sido escoradas de pau a pique, o barro das paredes endurecido e o sapê as abrigado da chuva e do frio da noite.

Lentamente, o casario foi-se transmutando em casebres de tijolo, porta e janela sem contornos retos, toscas telhas mal encaixadas, permitindo que sol e lua desenhassem figuras no chão de terra batida e gotas de chuva salpicassem os poucos pertences de uma mobília rústica.

Depois, devagar, avançou. A primitiva agricultura de grãos comestíveis foi alargando suas fronteiras pelo ermo inculto. Pastos apareceram, gente chegou, carros de bois gemiam pela estrada precária até terras vizinhas. Uma igreja brotou singela, uma escola nasceu no alto da colina, o cemitério enterrou seus primeiros mortos. 

Mas, por mais que se esforçassem, os habitantes da pequena aldeia não conseguiam ser felizes. Tinham sempre de lutar contra uma natureza ingrata e caprichosa, que com um simples sopro destruía colheitas inteiras, secava os açudes onde o gado acabava por definhar até a morte, castigava os telhados com granizo ou estorricava jardins criados com dedicação e esmero.

Aos poucos, o povo entristecido e cansado começou a acreditar que alguma pérfida maldição assombrava o vale de contornos doces e o suave regato que o banhava. Haviam combatido, esperado, murmurado promessas contritas, ajoelhado ao altar pedindo clemência. Debalde.

Na manhã daquele primeiro dia de inverno, cujos malsinados efeitos começavam a enregelar a pele e as almas, o torpor da derrota de há muito já havia drenado as últimas gotas de ilusão. O orvalho por fim deixara de cair nas flores secas do desespero.  O povo dormia, exausto e descrente.

Mas, apesar de frio, o sol nasceu, como sempre fazia. Mais um dia começava e, um por um, os habitantes foram despertando para suas rotinas sem cores, seus afazeres repetidos e inúteis, seu dia-a-dia acabrunhado pela sorte sovina. Despertaram sonâmbulos como sombras encurvadas e foram tentar vencer mais uma jornada sem fé.

De repente, uma trombeta soou pelos lados da serra que servia de entrada à aldeia. A notícia se espalhou logo. O Circo estava chegando!
Em minutos, a criançada correu lá pros altos do cemitério e postou-se em ambos os lados da rua de terra. As janelas das primeiras casas logo encheram-se de moradores, arrancados de seu desânimo pela voz potente do mestre de cerimônias apregoando as funções do espetáculo que iria apresentar no dia seguinte.

«Atenção, muita atenção, Senhoras e Senhores. O Gran Circo Dellavida está chegando! Preparem-se para o maior show da Terra. Os maiores artistas do Mundo. A grande vidente Madame Verité, que dirá o que lhes vai na alma. O famoso ilusionista Pangloss, cujas artes mágicas transformarão seus dias em perene alegria. O destemido domador de feras reais e imaginárias Il Grande Testafresca. A engraçadíssima dupla de palhaços Alto e Astral, que os farão debochar da adversidade. E, o maior número de todos, a família de equilibristas de fama internacional Os Incríveis Semmedos, que mostrarão como caminhar juntos sobre um fio de esperança. Não percam! Amanhã, em soirée única, às sete da noite na praça!»

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Era um final de tarde quando o Circo deixou a aldeia. Ao espetáculo do dia anterior, todos haviam comparecido. E agora acenavam, enquanto o desfile de despedida subia a colina. Quando a última carroça sumiu no topo, Vênus brilhava num céu vespertino e sem nuvens.


Quem notou a mudança foi um ambulante que havia passado pela vila meses antes e lembrava-se da imagem de uma comunidade moribunda. Tudo havia mudado. As casas estavam pintadas de novo, a igreja substituíra o sino quebrado, havia flores em profusão na praça e sorriso no rosto das crianças. Perguntou às pessoas que passavam o que causara a grande transformação. Foi embora sem entender a resposta.

Muitos passarão pela vida sem ver o Circo. Talvez porque não o procuram direito. Talvez porque não acreditam nele e, mesmo vendo-o, não o reconhecem. Mas, se um dia a vida tiver perdido o juízo e noite não prometer amanhã, apurem os ouvidos. Quem sabe não ouvem a voz do mestre de cerimônias, anunciando com garbo:

RESPEITÁVEL PÚBLICO...”

Oswaldo Pereira
Julho 2020

12 comentários:

  1. Respeitável... Boa idéia. Pão e Circo. Exaustão e Facismo. Do fundo do poço a sociedade nada vislumbra, nem céu ou inferno. Só o mergulho para dentro de si. Esse lugar de religiosidade e reflexão. Me parece q só ai encontraremos conexões e eventualmente respostas aceitáveis, cujas indagações sequer temos articulado a contento
    Contamos apenas com o tempo. Helas!

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  2. AMIGO, LINDO CONTO. QUEM É O AUTOR? FAREI COMENTÁRIOS MAIS EXTENSOS APÓS SABER A AUTORIA. ZEZÉ

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    1. Querida Zezé, o autor sou eu... Escrevi isto em abril de 2013. É uma dos muitos contos meus que estão armazenados neste PALAVRA ESCRITA. Obrigado pelo elogio.

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  3. Valeu Oswaldo. Esperança. Mais do que nunca vale o ditado: é a última que morre. Nos momentos atuais como necessitamos dela.

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  4. Como tu dizes, vou apurar os ouvidos e ouvir a voz do mestre de cerimónias! Bem preciso!
    Abraço

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  5. Caro Oswaldo;
    O circo das nossas vidas ,como você o diz, passa por nossas vidas sem ser percebido por nos, mesmo acreditando nele não nos damos conta que também fazemos parte do espetáculo. Alguém de fora percebe que mudamos e estamos mudando continuamente.
    E o respeitável publico nos asiste.
    obrigado mais uma vez pelo belo conto.
    Emilio Gonzalo

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    1. Muito bom, caro Emílio. Às vezes, deixamos mesmo a vida passar sem nos atentarmos, um descuido irreparável.

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  6. Querido Primo e Admirado Escritor,
    Uma vez mais você me levou às lágrimas.
    Abraços,
    Geraldo

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    1. Caríssimo primo, obrigado! E eu sinto falta dos teus inspirados escritos..

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