Vivemos num deserto de
assuntos. Ou melhor, os que perduram e se repetem já exauriram sua capacidade
de surpreender, de criar o novo, de fazer renascer atenções. Há semanas que os
noticiários recitam ad nauseam os
mesmos mantras. Pandemia, fake news, revisionismo histórico. Cada vez mais...
do mesmo. A Humanidade parou. O motor da criatividade e da descoberta está
engasgado, rateando num ram-ram estéril.
Sem alternativas, nem
estórias para contar, resolvi desenterrar um velho conto que escrevi em abril
de 2013, quando este desestimulante blog engatinhava
seus primeiros passos. Talvez tenha tudo a ver com o amortecido momento que atravessamos.
Ou talvez não, mas, pelo menos, ele fala de esperança, coisa de que estamos precisando...
Aí está:
“A vila dormia. Como
sempre dormira, desde seus primórdios, desde que as pequenas cabanas haviam
sido escoradas de pau a pique, o barro das paredes endurecido e o sapê as
abrigado da chuva e do frio da noite.
Lentamente, o casario
foi-se transmutando em casebres de tijolo, porta e janela sem contornos retos,
toscas telhas mal encaixadas, permitindo que sol e lua desenhassem figuras no
chão de terra batida e gotas de chuva salpicassem os poucos pertences de uma mobília
rústica.
Depois, devagar,
avançou. A primitiva agricultura de grãos comestíveis foi alargando suas
fronteiras pelo ermo inculto. Pastos apareceram, gente chegou, carros de bois
gemiam pela estrada precária até terras vizinhas. Uma igreja brotou singela,
uma escola nasceu no alto da colina, o cemitério enterrou seus primeiros
mortos.
Mas, por mais que se
esforçassem, os habitantes da pequena aldeia não conseguiam ser felizes. Tinham
sempre de lutar contra uma natureza ingrata e caprichosa, que com um simples
sopro destruía colheitas inteiras, secava os açudes onde o gado acabava por
definhar até a morte, castigava os telhados com granizo ou estorricava jardins
criados com dedicação e esmero.
Aos poucos, o povo
entristecido e cansado começou a acreditar que alguma pérfida maldição
assombrava o vale de contornos doces e o suave regato que o banhava. Haviam
combatido, esperado, murmurado promessas contritas, ajoelhado ao altar pedindo
clemência. Debalde.
Na manhã daquele
primeiro dia de inverno, cujos malsinados efeitos começavam a enregelar a pele
e as almas, o torpor da derrota de há muito já havia drenado as últimas gotas
de ilusão. O orvalho por fim deixara de cair nas flores secas do
desespero. O povo dormia, exausto e
descrente.
Mas, apesar de frio, o
sol nasceu, como sempre fazia. Mais um dia começava e, um por um, os habitantes
foram despertando para suas rotinas sem cores, seus afazeres repetidos e
inúteis, seu dia-a-dia acabrunhado pela sorte sovina. Despertaram sonâmbulos
como sombras encurvadas e foram tentar vencer mais uma jornada sem fé.
De repente, uma
trombeta soou pelos lados da serra que servia de entrada à aldeia. A notícia se
espalhou logo. O Circo estava chegando!
Em minutos, a criançada
correu lá pros altos do cemitério e
postou-se em ambos os lados da rua de terra. As janelas das primeiras casas
logo encheram-se de moradores, arrancados de seu desânimo pela voz potente do
mestre de cerimônias apregoando as funções do espetáculo que iria apresentar no
dia seguinte.
«Atenção, muita atenção,
Senhoras e Senhores. O Gran Circo Dellavida está chegando! Preparem-se para o
maior show da Terra. Os maiores artistas do Mundo. A grande vidente Madame
Verité, que dirá o que lhes vai na alma. O famoso ilusionista Pangloss, cujas
artes mágicas transformarão seus dias em perene alegria. O destemido domador de
feras reais e imaginárias Il Grande Testafresca. A engraçadíssima dupla de
palhaços Alto e Astral, que os farão debochar da adversidade. E, o maior número
de todos, a família de equilibristas de fama internacional Os Incríveis
Semmedos, que mostrarão como caminhar juntos sobre um fio de esperança. Não
percam! Amanhã, em soirée única, às
sete da noite na praça!»
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Era um final de tarde
quando o Circo deixou a aldeia. Ao espetáculo do dia anterior, todos haviam
comparecido. E agora acenavam, enquanto o desfile de despedida subia a colina.
Quando a última carroça sumiu no topo, Vênus brilhava num céu vespertino e sem
nuvens.
Quem notou a mudança foi
um ambulante que havia passado pela vila meses antes e lembrava-se da imagem de
uma comunidade moribunda. Tudo havia mudado. As casas estavam pintadas de novo,
a igreja substituíra o sino quebrado, havia flores em profusão na praça e
sorriso no rosto das crianças. Perguntou às pessoas que passavam o que causara
a grande transformação. Foi embora sem entender a resposta.
Muitos passarão pela
vida sem ver o Circo. Talvez porque não o procuram direito. Talvez porque não
acreditam nele e, mesmo vendo-o, não o reconhecem. Mas, se um dia a vida tiver
perdido o juízo e noite não prometer amanhã, apurem os ouvidos. Quem sabe não
ouvem a voz do mestre de cerimônias, anunciando com garbo:
RESPEITÁVEL
PÚBLICO...”
Oswaldo Pereira
Julho 2020