quarta-feira, 29 de julho de 2020

JUSTIÇA



Não é justo!..

Este foi o meu comentário no Facebook há dias, quando uma amiga postou o vídeo da cena de um western protagonizado pelo ator Clint Eastwood, na qual ele, instigado por amigos caubóis e acompanhado por um piano, interpreta uma bela canção country. Para tripudiar mais, ela escreveu em baixo: E, ainda por cima, ele CANTA!

Pois é. Uns com muito, outros nem tanto. E, assim, nestes incontáveis minutos de calmaria patrocinados pela prolongada quarentena, eu comecei a divagar sobre o tema. Como, por que e, especialmente, quem rege esta aleatória e desigual distribuição de dons? Que regente é este, que brinda alguns com uma genética primorosa ou com aptidões extraordinárias, e que a outros as escamoteia sovinamente? Quem é o responsável por esta bagunça insensata?

É claro que, desde tempo dos sacerdotes egípcios, as teorias abundam. Destino, karma, ou simplesmente coincidência já foram usados e abusados como explicações para este desnivelamento incompreensível.  Ao dizer isto, não pretendo, evidentemente, que todos nós nascessemos Mozart. Nem Da Vinci ou Einstein. Até porque o mundo seria brutalmente chato. Todo mundo ao piano compondo maravilhas aos 5 anos, ou pintando várias versões da Ceia, ou ainda teorizando intermináveis origens do Universo.

Mas, pelo menos, que o gap entre afortunados e nulidades não fosse tão acentuado. Que, falando em Clint Eastwood, o mundo não fosse dividido entre Il Bello, il Bruto e Il Cativo (O Belo, o Feio e o Malvado) do filme de Sergio Leone. E que, de repente, eu também tivesse físico bastante para ver, consagrada para todo o sempre, a minha figura de olhinhos apertados e charutinho na boca, cavalgando em direção a um lindo poente.

Oswaldo Pereira
Julho 2020

quarta-feira, 22 de julho de 2020

THE CROWN



Muito se tem comentado sobre as vantagens da quarentena no que diz respeito a colocar as atrações televisivas em dia. Com as benesses das TV a cabo e os streamings da Netflix, maratonar tornou-se um verbo bastante em uso quando se trata do imenso cardápio de séries à nossa disposição.

Faço cada vez mais parte desta legião de impenitentes seguidores compulsivos, para os quais emparelhar várias produções vai-se tornando um hábito corriqueiro. No momento, consigo, entre um zapeamento e outro no controle remoto, consumir avidamente conteúdos que vão desde o ambiente dark e decadente da Berlim de 1929 (BabylonBerlin, série do Canal Mais) até o futurismo da segunda temporada de Timeless, um devaneio sobre máquinas do tempo. Pelo meio, assomam os templários da série Knightfall, o fascínio da China de Marco Polo e, para manter o clima dos viajantes intertemporais, a belíssima saga escocesa de Outlander.

Ufa!, dirão. Há mais, insisto eu. Nesta semana, cheguei ao fim da terceira temporada (última disponibilizada até agora) do seriado THE CROWN, um magnífico trabalho do argumentista e dramaturgo britânico Peter Morgan para o canal Netflix. O tema cobre a vida da Rainha Elizabeth II, desde seu casamento em 1947 até (pelo menos no que diz respeito às temporadas já apresentadas) o Jubileu de Prata de seu reinado, em 1977. E com direito a numerosos flashbacks. Como o programado é estender o trabalho por mais três capítulos de dez episódios cada, presume-se que a história da rainha britânica seja trazida aos dias de hoje.

CAPA DA REVISTA "TIME" 1929
E que história! Elizabeth II, hoje a mais longeva monarca em exercício e a mulher que por mais tempo ocupou um cargo público desde sempre, vem mantendo a coroa em sua cabeça desde o pós-guerra e durante um período de cruciais mudanças dificilmente equiparado no passado. Atravessando crises políticas dramáticas em seu país, a dissolução do Império, investidas republicanas, mudanças comportamentais profundas em todo o planeta e, last but not least, conflitos familiares incomodativos, a Rainha soube suportar e contornar perigos e ameaças e consolidar a instituição monárquica. Atualmente, sua popularidade garante a existência da Coroa.  

PRINCESA ELIZABETH 1945
E é isto que THE CROWN nos faz reviver, com detalhes e precisão histórica admiráveis. Além da preciosidade da ambientação e do impecável roteiro, a escolha do elenco foi primorosa. Como a história se desenvolve num largo espectro de tempo, entre a segunda e a terceira temporada houve uma substituição dos atores, para espelhar o inevitável envelhecimento dos personagens. Esta mudança, que poderia acarretar algum estranhamento, confirmou ainda mais o acerto na escalação de atrizes e atores.

Claire Foy, a Elizabeth dos anos 1940 a 1960, foi revezada por Olivia Collman. Duas formidáveis atrizes, mas que diferem muito fisicamente. Além disso, tampouco se parecem com a Rainha. Mas, o imenso talento das duas opera o milagre da transfiguração e o espectador maravilhado continua enxergando a inconfundível figura de Elizabeth II em ambas. A mesma sensação perdura quando apreciamos o trabalho dos atores que personificam o Duque de Edimburgo (Matt Smith/Tobias Menzies), a Princesa Margareth (Vanessa Kirby/Helena Bonham Carter) e tantos outros. Para não falar na impressionante caracterização de John Lithgow como Winston Churchill.


THE CROWN já abocanhou três Globos de Ouro, dois deles atribuídos às duas atrizes principais. Estamos esperando por mais. Muito mais, pois Elizabeth II, a soberana que já sobreviveu a 14 Primeiros Ministros, ainda reina.


Oswaldo Pereira
Julho 2020

segunda-feira, 13 de julho de 2020

COVID-2020




Quem iria imaginar?...

Desde aquele já longínquo 11 de março, quando o inefável Tedros Adhanom Ghebreyesus (um nome cabalístico, conceda-se), Diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde, batizou o surto do Novo Coronavírus de Pandemia, estamos vivendo outra vida. Inimaginável, até pouco tempo antes. Apenas setenta dias para trás, o Mundo saudava a entrada de 2020. Lembro-me muito bem que numerólogos juramentados e profetas instantâneos vaticinavam para o ano infante um futuro glorioso, em que bons ventos e inebriantes fluídos embalariam as Estações em suaves cantigas de paz e amor. A Humanidade se engalanava para meses de pura alegria e fazia planos. Viagens, casamentos, novos negócios, novos empregos, aquela formatura tão batalhada e aguardada, aquele carro novo, a compra da casa dos sonhos.

Sonhos. Trump, Kim Jong-il e Xi Jinping não obstantes, o caminho à frente brilhava ao sol da manhã de um janeiro nascente. Uma trégua relativa nas guerras, economias em expansão, inclusão social sobre a Terra, o planeta girando feliz num Universo aos poucos desvendado pela Ciência. Uma festa.

Agora, com julho já pela metade, aqui estamos. Nós, os velhinhos, presos em casa. Os mais jovens se aventurando por bares e calçadas recém-abertos, mas com um pé atrás e máscaras no nariz. Rotinas, absurdas em nossa vida pré-COVID, tornando-se parte integrante do nosso cotidiano. Governos inseguros ou delirantes decretando éditos conflitantes, marchas e contramarchas, imprensa e “autoridades” politizando remédios e falseando dados, canalhas públicos roubando descaradamente enquanto gente morre.

Ah! 2020...  Que verbete triste você será. Restam-lhe menos de seis meses para você mudar a figura e resgatar-se ao olhos do futuro. Quem sabe, de repente, uma vacina lá pros meados de setembro, hein? Uma regressão inesperada nas estatísticas. O corona perdendo a força, broxando inapelavelmente. Quem sabe, uma alforria até para os velhotes. Antes do Natal. Para que nos permita esperar por 2021 com a mesma esperança, intacta, pintada de novo. que nos irradiou há sete meses e meio.

Oswaldo Pereira
Julho 2020

quarta-feira, 8 de julho de 2020

LEMBRANDO UM CONTO



Vivemos num deserto de assuntos. Ou melhor, os que perduram e se repetem já exauriram sua capacidade de surpreender, de criar o novo, de fazer renascer atenções. Há semanas que os noticiários recitam ad nauseam os mesmos mantras. Pandemia, fake news, revisionismo histórico. Cada vez mais... do mesmo. A Humanidade parou. O motor da criatividade e da descoberta está engasgado, rateando num ram-ram estéril.

Sem alternativas, nem estórias para contar, resolvi desenterrar um velho conto que escrevi em abril de 2013, quando este desestimulante blog engatinhava seus primeiros passos. Talvez tenha tudo a ver com o amortecido momento que atravessamos. Ou talvez não, mas, pelo menos, ele fala de esperança, coisa de que estamos precisando...

Aí está:

“A vila dormia. Como sempre dormira, desde seus primórdios, desde que as pequenas cabanas haviam sido escoradas de pau a pique, o barro das paredes endurecido e o sapê as abrigado da chuva e do frio da noite.

Lentamente, o casario foi-se transmutando em casebres de tijolo, porta e janela sem contornos retos, toscas telhas mal encaixadas, permitindo que sol e lua desenhassem figuras no chão de terra batida e gotas de chuva salpicassem os poucos pertences de uma mobília rústica.

Depois, devagar, avançou. A primitiva agricultura de grãos comestíveis foi alargando suas fronteiras pelo ermo inculto. Pastos apareceram, gente chegou, carros de bois gemiam pela estrada precária até terras vizinhas. Uma igreja brotou singela, uma escola nasceu no alto da colina, o cemitério enterrou seus primeiros mortos. 

Mas, por mais que se esforçassem, os habitantes da pequena aldeia não conseguiam ser felizes. Tinham sempre de lutar contra uma natureza ingrata e caprichosa, que com um simples sopro destruía colheitas inteiras, secava os açudes onde o gado acabava por definhar até a morte, castigava os telhados com granizo ou estorricava jardins criados com dedicação e esmero.

Aos poucos, o povo entristecido e cansado começou a acreditar que alguma pérfida maldição assombrava o vale de contornos doces e o suave regato que o banhava. Haviam combatido, esperado, murmurado promessas contritas, ajoelhado ao altar pedindo clemência. Debalde.

Na manhã daquele primeiro dia de inverno, cujos malsinados efeitos começavam a enregelar a pele e as almas, o torpor da derrota de há muito já havia drenado as últimas gotas de ilusão. O orvalho por fim deixara de cair nas flores secas do desespero.  O povo dormia, exausto e descrente.

Mas, apesar de frio, o sol nasceu, como sempre fazia. Mais um dia começava e, um por um, os habitantes foram despertando para suas rotinas sem cores, seus afazeres repetidos e inúteis, seu dia-a-dia acabrunhado pela sorte sovina. Despertaram sonâmbulos como sombras encurvadas e foram tentar vencer mais uma jornada sem fé.

De repente, uma trombeta soou pelos lados da serra que servia de entrada à aldeia. A notícia se espalhou logo. O Circo estava chegando!
Em minutos, a criançada correu lá pros altos do cemitério e postou-se em ambos os lados da rua de terra. As janelas das primeiras casas logo encheram-se de moradores, arrancados de seu desânimo pela voz potente do mestre de cerimônias apregoando as funções do espetáculo que iria apresentar no dia seguinte.

«Atenção, muita atenção, Senhoras e Senhores. O Gran Circo Dellavida está chegando! Preparem-se para o maior show da Terra. Os maiores artistas do Mundo. A grande vidente Madame Verité, que dirá o que lhes vai na alma. O famoso ilusionista Pangloss, cujas artes mágicas transformarão seus dias em perene alegria. O destemido domador de feras reais e imaginárias Il Grande Testafresca. A engraçadíssima dupla de palhaços Alto e Astral, que os farão debochar da adversidade. E, o maior número de todos, a família de equilibristas de fama internacional Os Incríveis Semmedos, que mostrarão como caminhar juntos sobre um fio de esperança. Não percam! Amanhã, em soirée única, às sete da noite na praça!»

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Era um final de tarde quando o Circo deixou a aldeia. Ao espetáculo do dia anterior, todos haviam comparecido. E agora acenavam, enquanto o desfile de despedida subia a colina. Quando a última carroça sumiu no topo, Vênus brilhava num céu vespertino e sem nuvens.


Quem notou a mudança foi um ambulante que havia passado pela vila meses antes e lembrava-se da imagem de uma comunidade moribunda. Tudo havia mudado. As casas estavam pintadas de novo, a igreja substituíra o sino quebrado, havia flores em profusão na praça e sorriso no rosto das crianças. Perguntou às pessoas que passavam o que causara a grande transformação. Foi embora sem entender a resposta.

Muitos passarão pela vida sem ver o Circo. Talvez porque não o procuram direito. Talvez porque não acreditam nele e, mesmo vendo-o, não o reconhecem. Mas, se um dia a vida tiver perdido o juízo e noite não prometer amanhã, apurem os ouvidos. Quem sabe não ouvem a voz do mestre de cerimônias, anunciando com garbo:

RESPEITÁVEL PÚBLICO...”

Oswaldo Pereira
Julho 2020