A nave vinha de longe, muito longe.
Saíra de seu sistema solar, uma confederação de 5 planetas
semi gasosos, localizado na Nebulosa de Orion, há mais de 5.000 anos.
Sua tripulação era a mesma, desde o
início. Um comandante, 1 imediato, 4 operadores e dois navegadores. Todos
feitos de uma matéria próxima do silício, anaeróbicos e retroalimentados por
ions retirados do ambiente que circundava a nave, ou seja, partículas de vento
estelar, abundantes em qualquer ponto do universo.
Chamá-los de inteligência artificial
seria o mesmo que, aqui na Terra, classificar os supercomputadores da NASA como
máquinas de calcular. A raça a que eles
pertenciam não encontraria entre nós qualquer parâmetro de definição
existente ou minimamente sequer aproximada do que estes viajantes efetivamente
eram. “Seres” já seria uma desclassificação. Eram mais, muito mais do que isto.
O objetivo da viagem era exploratório.
Como os Descobridores do nosso século XVI, a missão era a de mapear todo o território estelar existente entre o seu
sistema e uma galáxia em forma de espiral que os dados coletados durante um
incontável tempo de observação
haviam indicado ser um celeiro de planetas viáveis. Mas, o real propósito da
viagem era outro. Procuravam inteligência.
Uma pequena bola azul, terceiro planeta
a partir de uma diminuta estrela, situada quase na borda sul da tal galáxia
espiral, havia despertado o interesse da tripulação há mais ou menos 120 anos.
Os ultrassofisticados sensores externos da nave haviam captado esparsas
emissões de rádio vindas de lá. Logo as análises descartaram qualquer
possibilidade de distúrbios aleatórios ou fortuitos. Depois de milênios
cruzando regiões estéreis, onde as poucas formas de vida encontradas eram
incipientes ou estacionadas em níveis primitivos de evolução, os presentes
indícios eram promissores. Naquela bola azul, alguém se desenvolvera o bastante
para mandar mensagens ao universo.
No tempo que levaram para se aproximar,
foram coletando informações e mais informações sobre o tal planeta, alimentadas
por um fluxo cada vez maior de emissões. Ao chegarem perto do cinzento satélite
natural que circundava a bola azul, já sabiam quase tudo sobre ela. Depois três
bilhões de anos, em que evoluíra de um caldo fumegante a um mundo de atmosfera
estável e alimento abundante, várias estirpes de criaturas haviam-se revezado
no seu domínio. Até, coisa de uns dois milhões de anos atrás, uma raça
aparentemente frágil surgir de um desvio improvável na evolução, munida de uma
característica notável e decisiva. Adaptabilidade.
Após o período de um século até chegarem
perto, em que puderam dissecar e analisar todo o manancial de dados captado
pelos sensores, o conhecimento sobre o pequeno mundo, que agora surgia inteiro
e brilhante na janela da nave, era total.
Além de toda uma fauna e uma flora pujantes, ali existiam mais de 7
bilhões de seres inteligentes. Metabolizavam
oxigênio, água e alimentos para viver, embora por pouco tempo. Mas, praticavam
a reprodução da espécie em ritmo alucinante, o que garantia sua permanência
ininterrupta na face do planeta. Haviam-se dividido em países, de línguas e
costumes diferentes. Haviam guerreado uns aos outros, haviam-se subjugado
mutuamente, haviam lutado contra e se aproveitado de uma natureza que às vezes
parecia querer extingui-los. Mas, haviam sobrevivido.
Em tempo terrestre, era o dia 21 de maio
de 2020 quando finalmente estacionaram a nave no perímetro externo da densa e
protetora atmosfera do planeta que, agora já sabiam, era chamado de Terra em um
dos seus mais falados idiomas. Sabiam também que, neste momento, o planeta
passava por mais um episódio de ataque viral, um acontecimento quase cíclico na
história daqueles seres.
A comunicação entre os tripulantes da
nave era imediata. Com seus “cérebros” interligados, a decisão foi tomada em
nano segundos. Embora soubessem que aquela raça iria superar facilmente mais
esse pequeno contratempo, tão fascinados estavam por encontrarem uma espécie inteligente que, contrariando o
protocolo, resolveram dar uma ajudinha.
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Após um interregno que, nos relógios da
Terra, corresponderia a 78 horas, o imediato retornou à nave. Três dias antes,
por determinação do comandante, ele recebera a missão de descer à bola azul.
Observá-la de longe já não satisfazia a curiosidade que sentiam. Precisavam
saber mais.
Depois de livrar-se da metamorfose que
usara para movimentar-se pelo planeta, uma composição genética que o transformara
na réplica perfeita de um terráqueo,
o imediato transferiu seu relatório para os outros tripulantes. Tudo em frações
de segundo. E na linguagem sem
palavras que utilizavam. Mas, talvez por capricho, o imediato guardou em algum
escaninho de sua memória uma versão do que reportara numa das muitas línguas absorvidas
em sua peregrinação exploratória pela Terra. Se um dia pudéssemos lê-la, seu
texto seria este:
Complexo.
O povo da Terra é complexo. Paradoxal seria outro adjetivo aplicável. Evoluem
rapidamente, mas de maneira atabalhoada. Alguns exemplos:
.amam
a natureza que os cerca. Até entendem que, graças a ela, puderam sobreviver.
Por outro lado, a agridem.
.apesar
disso, há abundância. Só que não a distribuem como seria lógico. Há poucos com
muito e muitos com pouco.
.conseguiram
visualizar Deus. Mas o mitificaram numa variedade enorme de nomes e seitas diferentes.
.embora
todas estas seitas preguem a paz, o amor e o perdão, guerras terríveis e
atrocidades inimagináveis são praticadas em nome delas.
.conseguem
ser solidários e agressivos ao mesmo tempo. Assim como se emocionam com uma
criança morta num conflito, fomentam as condições para a existência deste mesmo
conflito.
.conhecem
e idolatram um sentimento chamado “amizade”, mas o abandonam e repudiam por
questões triviais.
.são
altruístas e egoístas, sensatos e loucos, generosos e cruéis, construtores e
destruidores, mansos e irados, pacíficos e guerreiros, gênios e tolos. Tudo ao
mesmo tempo.
O
ataque viral que experimentam não é o primeiro nem será o último. Mas não porá
em risco a sua existência. Seria preciso muito mais do que isto para
eliminá-los, se é que isto é possível. Sua resiliência os manterá vivos. Não
necessitam nossa ajuda. Acho que deveríamos voltar no futuro para observá-los
novamente. Sugiro daqui a mais 5.000 anos.
Oswaldo
Pereira
Maio
2020