quarta-feira, 29 de junho de 2016

SOBREVIVENTES




Quando uma série como Game of Thrones chega a uma sexta temporada, há que se valorizar os sobreviventes. Deve ser a produção que mais generosamente dizimou seus personagens, desde a surpreendente decapitação de um de seus primeiros heróis, o patriarca de uma das Casas mais simpáticas da trama, Eddard Stark. Nem o fato de que Ned era personificado pelo veterano e conhecido ator Sean Bean o livrou do cutelo logo no início do jogo.

Daí para a frente, nem ibope, nem torcida das legiões de seguidores, nem a fama de seus intérpretes era garantia de permanência no mundo fantástico criado por George R. R. Martin. O script era implacável, seguindo à risca a trama escrita, magnificamente, diga-se de passagem, por Martin nos cinco alentados volumes de A Song of Ice and Fire.

Assim, de permeio a cenas que entrarão para a história da televisão moderna, reis, príncipes, damas, sacerdotes, magos, vilões, mocinhos e bandidos sem distinção, foram sendo abatidos sem remorso e, à aguardada exceção do bastardo Jon Snow, sem volta. De costume, o último capítulo de cada temporada era particularmente cruel no índice de artistas que se despediam do elenco.

Para os que, como eu, tinham lido a obra de Martin, as mortes não constituíam surpresa, prenunciadas que eram na narrativa original. Acontece que esta sexta temporada foi além dos livros (Martin parou no quinto volume) e nos deixou sem referência. Dizem que os produtores da série estão seguindo as orientações do escritor, cujo lento ritmo criativo tem causado sérias palpitações a seus editores.

De qualquer maneira, a temporada que terminou no último domingo não deixou nada a dever às anteriores, no quesito desencarne. Com um precioso upgrade. Enquanto que, no passado, a maioria das eliminações era feita no varejo, desta vez a coisa foi no atacado. Além da colina de mortos na “Batalha dos Bastardos”, Cersei Lannister, de uma só penada, detonou todos os seus inimigos mais próximos na espetacular explosão do Grande Septo de Baelor. Magistral!

Desta forma, temos de reverenciar os que conseguiram chegar vivos ao 60º capítulo da sensacional novela. Longa vida a Sansa, Arya, Daenerys, Tyrion e, claro, Jon Snow! E, por que não, a Cersei e Jaime.

Vocês são, sem dúvida, os SOBREVIVENTES.



Em tempo.

Dois Brexits numa só semana. A saída dos ingleses de dois Euros (o Mercado e o Campeonato) em rápida sucessão desafiou todas as previsões. Nem o mago Merlin teria previsto esta dupla hecatombe. Ser eliminado pela Islândia é um feito apenas comparável à primeira derrota do “English Team”, há 60 anos, nos sagrados gramados de Wembley, por 6x3 frente à Hungria.

Naquele dia, pelo menos, havia a atenuante de que a seleção húngara contava com gênios da estirpe de Hideguti, Czibor e Puskas. Iria assombrar o mundo do futebol nos anos seguintes.

Mas a Islândia, vamos combinar... é um time aguerrido, mas ingênuo como uma virgem nórdica. A derrota deveu-se muito mais à péssima atuação inglesa do que ao esforço dos vikings. Nunca vi a Inglaterra jogar tão mal...


Oswaldo Pereira
Junho 2016




sábado, 25 de junho de 2016

O CANAL




As marés do Canal da Mancha sempre foram um problema. Desde tempos imemoriais, ondas revoltas, ventos traiçoeiros e correntes imprevisíveis transformaram em tormento as travessias entre as praias do continente e os esbranquiçados penhascos de Dover. Talvez por isso, a sina e a vocação para o isolamento tenham permeado a alma dos habitantes daquelas ilhas, formados a partir de um amálgama que fundiu celtas, anglos, saxões e vikings num povo duro, determinado, guerreiro, de cabelos e pele claros. Albion, a terra dos alvos, era como lhe chamavam.

Para os romanos, donos do mundo, aquilo era o fim dos caminhos, um reino inóspito habitado por tribos selvagens e com o desagradável hábito de não se renderem facilmente. Adriano plantou uma muralha para marcar a fronteira final de seu império. E só. Manter aquela província dava mais dor de cabeça do que tributos.

A próxima invasão, e última, só em 1066, quando Guilherme da Normandia aportou na Ilha, subjugou uma nobreza vacilante na batalha de Hastings e fundou sua dinastia. De lá até hoje, por mais que as gentes do continente tentassem, e estamos falando de figuras do calibre de Napoleão e Hitler, ninguém conseguiu sobrepor as ondas da Mancha. O mar e os britânicos garantiram a inviolabilidade de suas ilhas por todos esses séculos, cultivando, além de seus verdes campos, um jeito próprio de ser e de viver.

Também durante esse tempo, sua relação com o Continente nunca foi das melhores. Durante toda a Idade Média, as turras foram com os franceses, em guerras que chegavam a durar cem anos. Do outro lado do canal, é claro... Com Bonaparte, eram eles contra toda uma Europa dominada e o bloqueio continental decretado pelo imperador francês parecia ser quase uma consequência histórica natural para um povo que vivia de costas para seus vizinhos.

Esta posição, inclusive, fazia com que os ingleses olhassem de frente para o oceano, procurassem seu destino em outras praias e partissem para conquistá-las. Esta vocação transformou-os num povo de marinheiros, donos de uma imensa armada, e em astutos exploradores de rotas comerciais, propiciando a criação de um império estendido pelo planeta sob os sons do Rule Britannia! (Domine Britânia!), seu mote durante o esplendor do século XIX.
No século XX, as desavenças foram com os alemães. Muita tropa enviada ao continente foi dizimada em campos da França, da Bélgica. Um exército inteiro foi salvo pelo gongo em Dunquerque. Depois, sozinhas, as Ilhas amargaram os anos dos bombardeios, enquanto a Europa jazia sob a bota nazista. Quem os manteve acima da linha d’água foi sua antiga colônia americana, os Estados Unidos.

Assim, não pode ser surpresa para ninguém o Brexit. Os britânicos nunca se sentiram europeus. Jamais se sentirão. Seus meios, seus modos, seu humor e até sua comida nada têm a ver com as civilizações do lado de lá do Pas de Calais. Para eles, esse Continente de gente estranha fica do outro lado.

Do outro lado do Canal...

Oswaldo Pereira
Junho 2016





  





segunda-feira, 13 de junho de 2016

ALI



O ano era 1978. Setembro. A luta, valendo o título de campeão dos pesos-pesados, era em Los Angeles. A audiência, planetária.
O desafiante, ex-campeão em busca de, pela quarta vez, recuperar a coroa, tinha 36 anos e 241 dias, uma idade em que a maioria dos praticantes do esporte já pedira a aposentadoria. Seu adversário o vencera sete meses antes, sua terceira derrota numa carreira que começara há 18 anos. Mesmo os seus apoiadores mais otimistas não nutriam grandes esperanças de vitória.

Acontece que seu nome era Ali.

A equipe americana de boxe, nas Olimpíadas de Roma em 1960, ganhou três medalhas de ouro. Entre os campeões, um garoto de 18 anos chamava a atenção pela rapidez com que se deslocava no ringue e desnorteava seus adversários com golpes velozes e certeiros. Uma postura técnica comum de ser observada nos lutadores das categorias inferiores de peso, mas nunca antes vista num heavyweight. Nascia o bailado gracioso combinado com jabs e cruzados eficientes que o próprio boxeador iria mais tarde resumir em seu lema tático. To float as a butterfly, to sting as a bee (flutuar como uma borboleta, picar como uma abelha).

EQUIPE AMERICANA DE BOXE EM ROMA. NO CENTRO, CLAY/ALI

Quando seu nome começou a aparecer aqui no Brasil, o garoto já se profissionalizara e era postulante ao cinturão dos pesos-pesados. Para nós, que nos lembrávamos de outras lendas como Joe Louis, Jack Dempsey, Rocky Marciano, de suas defesas fechadas e de guarda alta e sua movimentação lenta, a dança ligeira deste novo candidato ao título era uma sensacional novidade. Até seu nome, Cassius Marcellus Clay era inspirador, numa época de filmes como Ben Hur e O Manto Sagrado. Um gladiador moderno com um nome romano...

Torcer por ele foi natural para nós, que partilhávamos a mesma idade, em que podíamos, como ele, proclamar nossas bravatas, nossa embriaguez com o futuro, nossa imortalidade. Éramos jovens e, portanto, invencíveis. Como ele.

Sua opção de recusar o recrutamento militar e de trocar sua religião e seu nome fez-nos sentir um pouco traídos. Daqui, não tínhamos como avaliar sua escolha e, para nós, o herói descera um degrau de seu pedestal.
Quando 1978 chegou muita coisa se passara. Muhammad Ali amadurecera, e nós com ele. Seu desafio de reconquistar o título soava como um último brado de juventude. Com os quarenta anos chegando, ainda sonhávamos. Os limites não existiriam enquanto pudéssemos dizer – se o quiser, ainda posso ser astronauta. Ali dizia – se eu quiser, ainda posso ser campeão.

A luta contra Leon Spinks durou 15 rounds. E, vencemos.

Os feitos de Ali nos anos seguintes foram em outra arena. A luta pela cidadania dos negros, os combates pela melhoria de vida dos mais desafortunados, a cruzada pela paz. E contra o mal que o assolava. Os milhares de golpes que ele parecia tão bem absorver cobravam seu preço. A tocha olímpica em sua mão trêmula, na cerimônia de 1996, ficou para sempre. O herói eterno.



Oswaldo Pereira
Junho 2016








sexta-feira, 3 de junho de 2016

CARA DE PAU



Uma das regras de sabedoria que muito aprecio é a que manda desconfiar da Unanimidade. O próprio sábio Nelson Rodrigues já a chamava de burra. E, pensando bem, é impossível admiti-la como normal.

Somos feitos de proteína, água e neurônios. Cada exemplar de nossa espécie é a síntese de infindáveis combinações de códigos genéticos, instiladas nos cromossomas de pais, avós, bisavós, numa cadeia de variações que nos irá definir no momento da nossa concepção. A resultante que somos nós não tem a menor chance matemática de se repetir. Somos únicos na nossa individualidade.

Se juntarmos a isto o mundo de informações que recebemos desde o primeiro choro na maternidade, que nos entram pelos sentidos sob a forma de exemplos, lições, influências, crenças e experiências, o produto resultante é uma mente que processa sua observação do universo de uma maneira que ela, e somente ela, será capaz de fazer. Nem os gêmeos univitelinos, embora fisicamente idênticos, serão intelectualmente iguais.

Dito isto, é humanamente normal que as pessoas interpretem os fatos diferentemente. Se eu olhar para uma linda tarde de sol morrendo no mar azul de Ipanema, e acreditar que é uma obviedade achá-la deslumbrante, vou estar certamente enganado. Do meu lado, posso ter alguém para o qual a cena evoque coisas tristes, um naufrágio, um amor perdido no mar, ou que simplesmente não goste de poentes.

Assim, divergências e discordâncias fazem parte do comportamento do homem social. Se assim não fosse, torceríamos todos pelo mesmo time de futebol, comeríamos a mesma fruta, pintaríamos as casas da mesma cor. E votaríamos no mesmo partido político. Só que assim não é.

Mas, existe uma vertente que faz, ou deveria fazer, convergir as opiniões para um sentido comum, um amplo acordo ou, pelo menos, uma concordância básica sobre um determinado tema. A esta vertente damos o nome de Bom Senso. Independente de observações diversas ou de índoles particulares, o Bom Senso assenta-se na compreensão generalizada de que uma certa opção reúne os ingredientes básicos para oferecer a melhor solução para ou o melhor entendimento de um problema. Uma opção que aproveita a todos. E que, portanto, deveria ser desejada por todos.

Lamentavelmente, no entanto, este óbvio conceitual parece não existir em fartas doses na mentalidade de nossos homens públicos. E, por mal dos nossos pecados, também inexiste neste incipiente Governo Interino. Depois de alertar o País para a gravidade da desastrosa situação a que a inépcia política e administrativa de Dilma Rousseff nos atirou e de prenunciar um purgatório de medidas austeras como única via de salvação, acaba de aprovar um generoso pacote de aumentos para o funcionalismo público, com percentuais que vão de 16 a quase 50 por cento. Um mimo de quase 60 bilhões de reais, enquanto quase 12 milhões de brasileiros amargam o desespero da falta de emprego.

Será que, após esta demonstração de total insensibilidade, ainda terão a cara de pau de, como já acenado pelo Ministro Meirelles, vir à Sociedade pedir mais impostos?


Oswaldo Pereira
Junho 2016