CAPÍTULO II – UM TSUNAMI
HUMANO
A renitente poluição
vespertina dos céus de Delhi faz com que o sol morra vermelho como as
turmalinas do Taj Mahal. Alimentada pela exaustão de um milhão e meio de
automóveis e mais de dois milhões de motoretas e tuk-tuks, a bruma que paira sobre a imensa capital é apenas uma
consequência de um dos mais permeáveis aspectos desse subcontinente. A
superpopulação.
São 1,3 bilhão de
habitantes. Entre as quinze mais populosas cidades do mundo, a Índia tem mais
duas, além de Delhi: Mumbai e Calcutá. Projeções indicam que, em 2050, o país
ultrapassará a China. Isto são estatísticas. Uma coisa é lê-las. Outra é
senti-las.
Um imenso rio de gente. Um
olhar ocidental, acostumado às suas particulares regras de coabitação e
convivência, perde seu sentido aqui. O poderoso caudal humano tem suas leis
próprias, a movimentação nas ruas permanentemente congestionadas seus ritmos e
humores exclusivos. Leva algumas horas para a mente se adaptar. Depois, é só
relaxar e apreciar o intrincado mosaico que a confluência de várias raças, ao
sabor dos milênios, desenhou na paisagem. Indo-arianos, mongóis, árabes,
drávidas e outras correntes menores colorem ruas, calçadas e parques das
grandes cidades, as mulheres com seus saris,
cholis, churidares e burkas, os
homens de dhotis modestos ou ricos sherwanis, imponentes turbantes ou um simples
fez. Uma paixão pelas mais garridas
cores transforma a multidão num cortejo festivo, infindável, incessante. Tons
de pele, cor de olhos, desenhos ritualísticos nas mãos, o universal bindi protegendo o chakra do terceiro olho, as longas barbas dos sikhs, legiões de escolares em férias com seus uniformes
ocidentais, os marciais lanceiros guardando o Templo Dourado, pobres e pedintes
em seus andrajos, os enxames de vendedores por toda a parte, uma colmeia, um
formigueiro. Como descrever este tsunami humano?
SARIS E CHOLIS |
Mas, uma infinidade de
gente significa também uma infinidade veículos auto-motores, resultando no mais
caótico trânsito que já vi neste planeta. Como sinais, faróis luminosos,
passadeiras para pedestres, avisos de limites de velocidade e de vias
preferenciais funcionam somente como decoração e guardas rodoviários existam
apenas na imaginação, ruas e estradas são um território free-for-all, onde arrepiantes manobras procuram espaços disputados
por carros, caminhões, ônibus, vans, tuk-tuks,
motoretas, bicicletas e transeuntes. E vacas. Sagrados em todo o território
nacional, estes plácidos animais julgam seu inalienável direito andar, parar e
até deitar em qualquer via pública, seja um caminho vicinal ou uma pista de
alta velocidade (nosso guia informou-nos que o fumo dos carros afugenta as
moscas, tornando a proximidade das estradas o endereço preferencial desses mimosos bichinhos...)
Adicionalmente, espelhos retrovisores, ao que parece, são solenemente
desprezados pelos audazes motoristas indianos, pois mudanças súbitas de mão ou
ultrapassagens a qualquer velocidade são feitas sem consulta a esse supérfluo acessório. Todos os veículos longos têm pintada na sua traseira a frase Blow Horn (toque a buzina) ou Horn Please (buzina, por favor). Assim,
a buzina é o item mais importante do modus
vivendi estradal na Índia. Sua incessante utilização serve para mensagens
como “estou aqui atrás”, “sai da frente”, “tô com pressa” ou “vou passar
de qualquer maneira”. Do Código de Trânsito, que julgo existir, o único
parágrafo que parece valer é a obrigatoriedade de, como os ingleses, se dirigir
pela esquerda. Mas, nem sempre...
CENA TÍPICA... |
OUTRA CENA TÍPICA... |
Uma verdade, porém, seja
dita. Em quinze dias, e por mais de 800 quilômetros de estradas e ruas
percorridos, só vi um acidente, e de pequena monta. Moral da história: os
indianos no trânsito, como em todo o resto, têm sua própria filosofia de
vida...
(continua)
Oswaldo Pereira
Novembro 2015
Existe um ordenamento no caos, mas bom mesmo eh deixar suas sandálias nas escadas da entrada do Templo e ao sair, encontra-las ali, no mesmo lugar.
ResponderExcluirVerdade verdadeira.
ExcluirÉ muita confusão para se andar, não me encorajo para ir à India. Sei que tem uma riqueza enorme e muito diferente de tudo mas não teria coragem de enfrentar tamanha multidão. Parabéns, foi e conheceu tão diversa cultura.
ResponderExcluirA descrição dos sifnificados da buzina é hilariante.... E a conclusão 'eu me entendo na minha bagunça' atenua a má impressão....
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