segunda-feira, 30 de novembro de 2015

ÍNDIA - PARTE III





III – RELIGIOSIDADE

Ôôômmmm...

O som é universalmente conhecido. Evoca mantras transcendentais, uma elevação ao estado alfa, a perfeição do nirvana. Seu timbre grave sintetiza num só tom o nome de 33.000 deuses.

A Índia foi o berço de várias religiões e, até hoje, seus cultos, rituais e acólitos povoam uma terra em que tudo é sagrado. Todas as formas de vida recebem a proteção de uma divindade e a reverência de uma população que tem sempre os olhos postos nos ciclos cósmicos da eternidade.

Atualmente, o hinduísmo domina, com 80% de seguidores. Seguem-se o islamismo (13%), o cristianismo (3%), o sikhismo (2%), o budismo e o jainismo, com 1% cada. Um por cento parece pouco, mas, numa população total de 1,3 bilhão, cada uma destas duas últimas contabiliza 13 milhões de fiéis...

Assim, Brahma, Vishnu e Shiva, a trindade máxima do hinduísmo, que representam, respectivamente, a Criação, a Preservação e a Destruição, são onipresentes numa miríade de templos e altares, construídos com requintes ou singeleza, erguidos às margens de rios ou escavados nas rochas, louvados em ritos milenares e celebrados nos textos santificados dos vedas ou na intrincada mitologia do Mahabharata ou do Ramayana.

No plano a seguir, uma constelação de entidades está identificada com cada aspecto da vida e do universo. Conceitos como chakras, tantra, karma e práticas como o yoga, a alimentação vegetariana e os hábitos de purificação de corpo e espírito comandam o dia-a-dia de centenas de milhões de pessoas. A crença no ciclo de reencarnação e na necessidade de evoluir sempre, até atingir-se a liberação final de sua repetição, compõe o núcleo central de uma filosofia de comportamento e convivência.

Os guias que nos acompanharam foram pródigos em explicações sobre o que víamos e ouvíamos nos templos e nas ruas. E não o faziam apenas para atender à nossa ávida curiosidade. Faziam-no quase como um dever religioso...

FINAL – UM ROTEIRO

Se soubesse o que agora sei, teria invertido a ordem do nosso roteiro. Primeiro, iria a Goa, onde a ainda forte influência portuguesa permite apenas um primeiro gostinho dos sabores indianos. É Índia, claro, mas uma Índia light, um prelúdio do impacto que virá a seguir.

Daí, iria a Mumbai, para um tratamento de imersão num torvelinho humano indescritível, um banho caudaloso e quente de cheiros, cores e alaridos, a Índia com I maiúsculo, dos filmes e das crônicas.

UDAIPUR: THE TAJ LAKE HOTEL
Então, seria a vez do mítico Rajastão, a Índia dos palácios, das grandes extensões onde a planura sem fim dos campos contracena o fausto dos marajás com a pobreza extrema do povo, dos lagos de Udaipur, da pureza branca de Ranakpur, do monolítico forte de Mehran Garh em Jodhpur, dos espelhos de Samode, do Palácio dos Ventos dentro da cidade rosa de Jaipur, dos elefantes de Amber.   

PALÁCIO DOS VENTOS EM JAIPUR














O TEMPLO DOURADO DE AMRITSAR














Só depois viria Uttar Pradesh e a cereja do bolo – o Taj Mahal.

Aí sim, estaria preparado para a cidade velha de Delhi, para o pandemônio humano, o caos urbano e o mais lunático trânsito do planeta. E para a paz celestial da Mesquita de Jama Masjid...

E terminaria no Punjab, terra dos sikhs e do Templo Dourado de Amritsar. O adeus seria na fronteira com o Paquistão, em Wagah, envolvido pelo frenesi patriótico que acompanha os malabarismos da ordem unida dos guardas, na cerimônia de descida da bandeira.

Mas, não interessa a ordem. O que aprendi foi inesquecível. Em qualquer sequência, a Índia é um mundo que deve ser visto, ouvido, inalado, saboreado e tocado. Só não há como descrevê-lo.

Oswaldo Pereira
Novembro 2015   
  



segunda-feira, 23 de novembro de 2015

ÍNDIA - PARTE II



CAPÍTULO II – UM TSUNAMI HUMANO

A renitente poluição vespertina dos céus de Delhi faz com que o sol morra vermelho como as turmalinas do Taj Mahal. Alimentada pela exaustão de um milhão e meio de automóveis e mais de dois milhões de motoretas e tuk-tuks, a bruma que paira sobre a imensa capital é apenas uma consequência de um dos mais permeáveis aspectos desse subcontinente. A superpopulação.

São 1,3 bilhão de habitantes. Entre as quinze mais populosas cidades do mundo, a Índia tem mais duas, além de Delhi: Mumbai e Calcutá. Projeções indicam que, em 2050, o país ultrapassará a China. Isto são estatísticas. Uma coisa é lê-las. Outra é senti-las.

Um imenso rio de gente. Um olhar ocidental, acostumado às suas particulares regras de coabitação e convivência, perde seu sentido aqui. O poderoso caudal humano tem suas leis próprias, a movimentação nas ruas permanentemente congestionadas seus ritmos e humores exclusivos. Leva algumas horas para a mente se adaptar. Depois, é só relaxar e apreciar o intrincado mosaico que a confluência de várias raças, ao sabor dos milênios, desenhou na paisagem. Indo-arianos, mongóis, árabes, drávidas e outras correntes menores colorem ruas, calçadas e parques das grandes cidades, as mulheres com seus saris, cholis, churidares e burkas, os homens de dhotis modestos ou ricos sherwanis, imponentes turbantes ou um simples fez. Uma paixão pelas mais garridas cores transforma a multidão num cortejo festivo, infindável, incessante. Tons de pele, cor de olhos, desenhos ritualísticos nas mãos, o universal bindi protegendo o chakra do terceiro olho, as longas barbas dos sikhs, legiões de escolares em férias com seus uniformes ocidentais, os marciais lanceiros guardando o Templo Dourado, pobres e pedintes em seus andrajos, os enxames de vendedores por toda a parte, uma colmeia, um formigueiro. Como descrever este tsunami humano?   

SARIS E CHOLIS
Mas, uma infinidade de gente significa também uma infinidade veículos auto-motores, resultando no mais caótico trânsito que já vi neste planeta. Como sinais, faróis luminosos, passadeiras para pedestres, avisos de limites de velocidade e de vias preferenciais funcionam somente como decoração e guardas rodoviários existam apenas na imaginação, ruas e estradas são um território free-for-all, onde arrepiantes manobras procuram espaços disputados por carros, caminhões, ônibus, vans, tuk-tuks, motoretas, bicicletas e transeuntes. E vacas. Sagrados em todo o território nacional, estes plácidos animais julgam seu inalienável direito andar, parar e até deitar em qualquer via pública, seja um caminho vicinal ou uma pista de alta velocidade (nosso guia informou-nos que o fumo dos carros afugenta as moscas, tornando a proximidade das estradas o endereço preferencial desses mimosos bichinhos...) Adicionalmente, espelhos retrovisores, ao que parece, são solenemente desprezados pelos audazes motoristas indianos, pois mudanças súbitas de mão ou ultrapassagens a qualquer velocidade são feitas sem consulta a esse supérfluo acessório. Todos os veículos longos têm pintada na sua traseira a frase Blow Horn (toque a buzina) ou Horn Please (buzina, por favor). Assim, a buzina é o item mais importante do modus vivendi estradal na Índia. Sua incessante utilização serve para mensagens como “estou aqui atrás”, “sai da frente”,tô com pressa” ou “vou passar de qualquer maneira”. Do Código de Trânsito, que julgo existir, o único parágrafo que parece valer é a obrigatoriedade de, como os ingleses, se dirigir pela esquerda. Mas, nem sempre...

CENA TÍPICA...

OUTRA CENA TÍPICA...
Uma verdade, porém, seja dita. Em quinze dias, e por mais de 800 quilômetros de estradas e ruas percorridos, só vi um acidente, e de pequena monta. Moral da história: os indianos no trânsito, como em todo o resto, têm sua própria filosofia de vida...

(continua)

Oswaldo Pereira
Novembro 2015


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

INDIA - PARTE I




John Godfrey Saxe foi um poeta satírico americano do século XIX, cujo mais conhecido poema foi “The Blind Men and the Elephant” (Os Cegos e o Elefante), uma parábola sobre a condição humana que nos faz, às vezes, julgar o todo a partir do conhecimento apenas da parte. Como cada cego (são seis) toca no animal em partes diferentes de seu corpo, chegam a conclusões individuais desencontradas sobre o que ali está. Esta é a descrição mais próxima da sensação que me ficou desta viagem. Palavras não bastam. Nem fotos, nem pinturas. Nem canções e nem poemas. Nem uma vida inteira. Explicar a Índia como um todo é humanamente impossível.
Foram quinze dias viajando, desde os confins do Punjab às praias de Goa, dos palácios de Uttar Pradesh aos contrafortes das montanhas do Aravalli, da vertigem de Delhi ao esplendor do Rajastão, da quietude de Ranakpur ao torvelinho de Mumbai. Quinze dias nos quais me deparei com algumas peças de um imenso quebra-cabeças, um caleidoscópio gigante de pedras preciosas girando numa cornucópia de lendas, rituais e de uma história que se perde na bruma dos tempos.
E esta tosca tentativa de descrever o indescritível vai ter de ser por capítulos. A Índia é grande demais para um blog...

CAPÍTULO I – EXPERIÊNCIA SENSORIAL
Neste nosso século, e no anterior, tem-se corrido atrás do petróleo. No próximo, a briga provavelmente será pela água. Mas no século XV, o motivo de cobiça eram as Especiarias. Enquanto a República de Veneza as comprava dos turcos a preços absurdos, e as revendiam ainda mais caras aos europeus, Portugal e Espanha, as grandes potências marítimas de então, empreenderam uma frenética disputa para ver quem primeiro descobria uma rota alternativa para o país de onde elas se originavam – a Índia. Utilizadas como conservantes, essências perfumadas, incensos e até afrodisíacos, estes produtos de origem vegetal (flores, frutos, caules, raízes, cascas ou sementes), de aroma e sabor acentuados, fizeram a diferença no cardápio insípido da Idade Média e mudaram os hábitos alimentares da Renascença. E continuam espicaçando o primeiro sentido a ser provocado quando se aporta em solo indiano. O paladar.

DUM ALOO: BATATA RECHEADA COM MOLHO CURRY




O "SALVADOR" CHAPATI









Em todos os locais onde se serve comida, os cardápios dividem a escolha em duas grandes categorias. Vegetariano ou não. Num país em que a maioria das religiões praticadas proíbe a ingestão de alimento de origem animal, é compreensível. O que leva algum tempo para perceber é que, em qualquer escolha que se faça, a boca do visitante sempre experimentará, em maior ou menor grau, a pungente delícia das especiarias. Masalas e currys são os onipresentes molhos e cada região (e cada cozinheiro, na verdade), tem sua fórmula secreta para misturar cardamomo, canela, piri-piri, cominho, cravo, açafrão e noz-moscada, e outros ingredientes de uma infindável lista. Eles irão acompanhar batatas, peixes, galinhas, carneiros, que podem estar cercados de arroz basmati ou lentilhas, vegetais cozidos ou saladas. Relaxe e não se preocupe com a ardência. Ao final, sempre aparecerão cestas com chapati, um pão fino sem fermento. Generosamente barrados de manteiga, irão mitigar rapidamente o ardor.

Por esta altura, o olfato já entendeu que estamos num mundo à parte e que, em qualquer rua de Delhi, uma cidade de 18 milhões de habitantes, você estará sempre no meio de uma multidão, de um engarrafamento e de uma profusão de lojas, tendas, quiosques, tascas, bancadas que vendem de tudo e espalham sem pudor uma monstruosa quantidade de lixo. Odores, perfumes, almíscares. Fumaça, gente, animais, comida, incenso. Tudo junto. Tudo muito.

RUA DE DELHI

Ouvir a Índia é outra experiência sensorial única. Seja na cacofonia de Delhi ou de Mumbai, mega cidades onde a buzina dos carros é uma sinfonia permanente, seja no som das flautas e tambores dos encantadores de serpentes no átrio de algum palácio, nos celestiais mantras dos jainistas em Ranakpur, na gritaria patriótica durante as cerimônias militares na fronteira com o Paquistão, no tinir dos címbalos dentro do templo de Laxmi Narayan na celebração do Aasti, no barulho ensurdecedor da lavagem dos pratos e talheres de um refeitório onde são servidas 50.000 refeições gratuitas por dia, em Amritsar. Ouvir a Índia é também escutar sem entender uma palavra do hindi e suas variações e perceber alguma coisa do acentuado inglês falado em toda a parte. Afinal, são 22 línguas oficiais, 164 idiomas menores e 1.576 dialetos.



Mas o melhor de tudo é ver. Olhar, perscrutar, espreitar, mirar, enxergar, espiar, vislumbrar e, principalmente, contemplar. Seriam precisos rios de escrita e uma capacidade descritiva sobre humana para por no papel a imagem de um mundo que atravessa todo um subcontinente milenar, que aprofunda suas raízes em Mohenjodaro, no alvorecer da civilização, e expõe as cores de uma história vibrante através dos séculos, das raças e das crenças, até os dias de hoje, em que todos estes capítulos se sobrepõem e se somam, num grande e fantástico painel multifacetado.

(continua)

Oswaldo Pereira
Novembro 2015

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

JIHAD




O primeiro texto seria sobre a Índia, esse fabuloso semi-continente que tive a ventura, e a aventura, de atravessar durante os últimos quinze dias. Mas quis o destino que a nossa volta de Mumbai para a Europa, inicialmente reservada num voo da Lufthansa com destino a Frankfurt, fosse, por causa da greve dos alemães, reprogramada para Paris pela Air France. Nosso avião decolou às duas e vinte da madrugada de sábado, dia 14. Na França, eram nove e quarenta da noite do dia 13. Hora em que o inferno abria suas portas na capital francesa.

A vagem aérea foi extremamente tranquila. Em algum escaninho do cérebro, a única preocupação era o pouco tempo da escala, menos de duas horas entre a chegada e a partida do voo para Lisboa, na imensidão do Charles de Gaulle. Nada, entretanto, que viajantes experimentados em conexões apertadas não fossem capazes de administrar.

A primeira sensação de que algo não estava bem foi logo à entrada do terminal 2. A esta altura, enormes filas formavam-se onde não era suposto sequer existirem. Controles minuciosos de bagagem e de documentação engasgavam a movimentação usualmente frenética do grande aeroporto, como que petrificando-a no silêncio de longos compassos de espera. Nesse momento, a França fechava seu espaço aéreo e suspendia o Acordo Schengen, praticamente erguendo um muro em suas fronteiras. Foi por milagre que conseguimos, quase sem fôlego, pegar o avião para Portugal. E, então, entender a dimensão da tragédia que ferira a cidade que, há menos de um mês, nos aconchegara num belo fim de semana outonal.

Já muito escrevi neste blog sobre violência religiosa, sobre o mistério paradoxal que não consegue explicar como as diversas crenças, cuja filosofia central assenta-se na prática do bem e da compaixão, foram, durante a longa história da humanidade, as maiores responsáveis pela intolerância, pelos conflitos e pelas guerras. E, em pleno século XXI, a leitura radical dos códigos sagrados de um desses credos está transformado-se numa evocação sangrenta. A virulência do braço armado do ISIS, absolvido pelo silêncio praticado pelos dirigentes do mundo árabe, não deixa dúvidas. O Islã levanta-se.

E já foram coincidências demais para desqualificar esta afirmação como um surto paranoico da teoria da conspiração. É muito estranho que, de repente, uma disputa intestina na Síria se transforme em palco central de uma queda de braço que traz reminiscências da Guerra Fria. Que a política de preços da Arábia Saudita leve à penúria os grandes exportadores ocidentais de petróleo. Que a decantada Primavera Árabe tenha-se transformado num deserto árido de disputas tribais. Que uma onda de refugiados nunca vista desde a Segunda Guerra Mundial tenha despejado em solo europeu mais de um milhão de muçulmanos da África Setentrional e do Oriente Médio. Podem ser movimentos autônomos, sem conexão entre eles? Podem. Pode ser tudo parte de uma grande estratégia? Também pode.

O que vi no Aeroporto Charles de Gaulle foi uma França assustada. E foram necessários apenas seis jovens kamikazes, a maioria deles islamitas com cidadania francesa, para fazer Paris dobrar os joelhos e levar o pânico de Londres a Roma. O Daesh anuncia que, infiltrados nas hordas de migrantes recolhidas nos últimos meses, 4.000 “soldados” do ISIS penetraram no continente europeu. É de tirar o sono.

Oswaldo Pereira

Novembro 2015