Ele chegou à porta. O antigo mordomo abriu-a e
olhou para ele com uma expressão cansada. Ele perguntou.
«Como ela está?»
O velho empregado não respondeu. Apenas levantou
os braços e deixou-os cair ao longo do corpo magro, balançando a cabeça. Ele voltou a falar.
«Mas, pelo menos cheguei a tempo...»
«De que?», retorquiu o outro.
«De vê-la ainda com vida...», ele murmurou, mais
para si mesmo. E entrou.
Quase não havia luz no longo corredor. O alto pé
direito alongava a sombra das velas por paredes onde um papel de motivos démodés descolava aqui e ali e quadros
escuros pendiam já sem prumo certo. As tábuas do chão gemiam um ranger de
madeira seca e abandonada a cada passo seu. O cheiro era uma mistura de mofo
com decadente descaso. Mesmo na pouca claridade, ele viu que havia gente,
encostada nas paredes do corredor, figuras mudas no meio do silêncio. Em vigília, pensou.
Passos à frente, deu numa antessala. Mais gente. Falavam
em voz baixa. Algumas frases conseguiam escapar e chegavam aos seus ouvidos. “acho que está por um fio...”, “talvez
não... ela é muito forte, você sabe... às vezes parece que a perdemos e ela
ressurge, gloriosa...”. Perto de uma lareira sem uso, duas mulheres
chamaram-lhe a atenção. Uma trazia os cabelos negros num coque severo, feições que
pareciam reter uma inabalável certeza. A outra era serenamente bela, de
infinitos olhos claros. Aproximou-se e perguntou quem eram. «Fé», disse a
primeira, sem pestanejar. «Caridade», falou a segunda, com um leve sorriso no
olhar doce. E prosseguiu. «Estamos aqui desde que ela adoeceu. Somos suas
irmãs...»
A primeira repreendeu-o. «Soubemos que você pensou
em abandoná-la. Que até andou dizendo que ela já não mais existia. Como pôde
fazer isso?» Ele olhou para baixo, envergonhado. «Desculpem... Por favor,
desculpem... Foi por isso que vim. Tenho de vê-la de novo, beijar sua face,
segurar suas mãos, pedir-lhe perdão pela minha descrença...»
Caridade tocou-lhe no ombro e dirigiu o olhar para
a porta aberta do quarto em frente à pequena antessala. «Vá...», sussurrou com
ternura, «ela o espera, como sempre...»
E assim ela estava, recostada nas grandes
almofadas macias, seu rosto quase radiante como numa primavera tardia, seu
sorriso de cristal triste ainda desafiando as trevas do quarto abafado.
«Finalmente. Você veio...» Sua voz parecia firme.
Ele ajoelhou-se ao lado da cama. E contou sua
história.
«Andei por aí. Atravessei mares, montanhas,
desertos, florestas. Continentes. Vi a Terra. O que tenho para contar é um
rosário de penas. Vi fome, ouvi gritos. Conflitos, em todo lugar. Vi povos
escravizados como subumanos, outros morrendo nas ondas do descaso, mais outros
degolados em nome de um deus. Vi o preconceito distorcendo vidas, fobias
anulando sonhos, ódios raciais destroçando gerações. Vi a arrogância dos governos envenenando o ar e sufocando as nascentes. Vi geleiras morrendo e matas a arder. Vi a política usada como
arma de poder, a ganancia secando o fruto do trabalho honesto, a corrupção
matando crianças nas filas dos hospitais, queimando a flor do saber nas mãos dos jovens e roubando seu futuro. Estou cansado. Estou farto de ver a vitória dos
espertos, o festim diabólico dos assassinos, o riso gordo dos sacripantas, o
escárnio dos corruptos. Comecei a duvidar... de ti. Procurei-te em toda a
parte, sem te encontrar. Só faltava vir aqui, minha querida Esperança. Ao Fim
do Mundo...»
Oswaldo
Pereira
Abril
2015