GONÇALVES DIAS. POETA BRASILEIRO (1823/1864) |
Meu primeiro livro,
como já relatei no texto que deu início a este blog, foi OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES, de Monteiro Lobato. O
segundo, por imposição dos meus pais, foi O GUARANI. Achavam que eu precisava
de literatura a sério e esta só podia
ser encontrada nos grandes clássicos. OS LUSÍADAS talvez fossem um pouco demais
para um garoto de treze anos e papai era fã dos indianistas brasileiros como José de Alencar. Dos poetas, tinha especial
predileção por Gonçalves Dias e adorava declamar para a plateia familiar os
versos de I-Juca-Pirama, especialmente
a parte da maldição.
I-Juca-Pirama,
na linguagem tupi, queria dizer “aquele que deve morrer” e o poema contava a
história de um guerreiro que, feito prisioneiro dos canibais Timbiras, e tendo
deixado seu pai cego abandonado na floresta, suplica por sua vida. Duvidando
da desculpa do prisioneiro e considerando sua súplica um ato de extrema
covardia, o Cacique o manda libertar, para que sua carne ignóbil não
contaminasse a tribo. Mas, ao voltar para a floresta e reencontrar-se com o
pai, este, com o tato, percebe o crânio raspado e a pintura do ritual da morte
que cobria o rosto do filho, e deduz sua fraqueza diante do destino. Obriga-o a
voltar com ele à aldeia inimiga, onde ouve o chefe timbira relatar com
desprezo a vilania do jovem tupi. O velho pai, devastado pela vergonha, o
amaldiçoa perante todos. Tomado em brios, o filho resolve lutar e, com extrema
galhardia, derrota sozinho inúmeros adversários, o que faz o chefe timbira
reconhecer sua coragem e declará-lo novamente digno de ser sacrificado. O que
faz o velho pai, lavado em sua honra, declarar: “este sim, que é meu filho
muito amado”. O poema termina com alguém contando esta história tempos depois e
afirmando, para quem duvidasse de sua veracidade, “meninos, eu vi...”
Como na ópera O
Rigoletto, em que a maldição do bobo da corte contra o Duque de Mântua é o tema
mais dramático da obra, também as estrofes que compõem o anátema lançado pelo
velho pai é a parte mais impressionante de I-Juca-Pirama.
“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.
“Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!
“Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
“Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas como asco e terror!
“Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
“Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és.”
VICTOR MEIRELLES "MOEMA" |
Produto do ufanismo que varreu as artes brasileiras na segunda metade do século XIX, o indianismo foi o equivalente brasileiro do romantismo europeu e seus temas da Idade Média. Como não tivemos cavaleiros andantes e donzelas na torre na nossa realidade histórica, fomos beber na fonte das florestas, criando a figura do índio altivo e valente. Além da literatura, com os romances de Alencar (O Guarani, Iracema, Ubirajara) e a poesia de Gonçalves Dias e Castro Alves, a pintura, pela mão de Victor Meireles e Rodolfo Amoedo, também exaltou esta visão idealizada do silvícola pátrio, atribuindo-lhe o mesmo status quase santificado que na Europa se galardoou aos heróis medievais. Lá, armaduras e dragões já saíram de cena há muito, mas por aqui, ainda há, encerradas na imensidão e impenetrabilidade da Amazônia, tribos desconhecidas e intocadas pela civilização. Um espanto, neste limiar do terceiro milênio e mote para acordar os indiana joneses que habitam a alma de muito aventureiro.
Oswaldo Pereira
Setembro 2014