domingo, 14 de setembro de 2014

CALEIDOSCÓPIO BALCÂNICO





Uma região marcada pelo conflito. Durante boa parte parte do século passado, e até os primórdios do Terceiro Milênio, os Bálcans foram palco de intermináveis disputas políticas, religiosas e étnicas que sangraram suas belas montanhas, seus férteis campos, suas cidades cheias de história e seu povo. 

Só entre 1912 e 1913, foram duas guerras. Alianças instáveis entre sérvios, búlgaros, albaneses e romenos, sob a influência dos grandes impérios europeus de então, procuravam apropriar-se de pedaços do Império Otomano em vias de desintegração e oferecer proteção aos cristãos da Macedônia turca. Brigaram todos. O Tratado de Bucareste selou uma paz frouxa. Um ano depois, essa instabilidade acendeu o estopim da Primeira Guerra Mundial (mais detalhes, para quem ainda não leu, no meu post "Primeira Guerra Mundial - 100 anos").

Nas duas décadas seguintes, a região continuou fervendo seu caldeirão de discórdias, alimentado pelo inconformismo de expatriados apanhados no lado errado de divisões territoriais contrárias aos seus anseios nacionais, oportunisticamente aproveitado pelas crescentes ambições de comunistas e fascistas. A Segunda Grande Guerra transformou tudo numa enorme fogueira. Das cinzas, nasceu um país. A Iugoslávia, engendrada basicamente pelos partisans sérvios, cuja hegemonia na nova nação seria garantida pela mão férrea de Josep Broz Tito, sob o beneplácito e auspícios da União Soviética. 

Tudo começou a se dissolver em 1990. Com o estilhaçamento da Iugoslávia, a seguir à glasnost russa, abriu-se um baú de horrores. Em 1991, teve início a guerra da independência da Eslovênia; no mesmo ano, a Croácia foi pelo mesmo caminho e, no ano seguinte, a Bósnia. Até 2001, o mundo acompanhou, horrorizado, cenas de bombardeios implacáveis de populações civis, chacinas medonhas rotuladas de limpezas étnicas, o ressurgimento amargo de campos de lento extermínio. Desde 1945, a Europa não testemunhava acontecimentos tão degradantes em seu território. Cem mil mortos, centenas de milhares de refugiados, economias destroçadas, dor. Aos poucos, a ONU e outras agências foram costurando uma convivência possível mas, até agora, ainda se discute o futuro do Kosovo. De qualquer maneira, para quem hoje lá chega em visita, a sensação é de paz e segurança.

CROÁCIA
Segunda a terminar os combates, em 1995 (depois da Eslovênia), a Croácia teve tempo para empreender uma espetacular reconstrução. Endereço obrigatório para que adora praias de água cristalina, boa comida e cenários de sonho desde 1920, o país, depois da sua independência, investiu pesado no turismo, procurando apagar as marcas do passado recente de lutas. E o que se vê, desde a capital Zagreb até a charmosa e praieira Cavtat (mais ou menos 500 quilômetros de estrada, dos quais 300 margeando o Adriático), na ponta sul, é um constante apelo ao visitante para desfrutar suas vilas históricas, sua costa recortada, suas ilhas mágicas, marinas atulhadas de monumentais iates e veleiros, portos acolhendo oceanliners do tamanho de cidades e o verdeazul das águas. Os antigos romanos conheciam isto como Dalmácia e iam para lá no Verão com o mesmo fervor que hoje aportam alemães, austríacos e outros povos sedentos de sol.

ZAGREB: RUA TKALCICEVA (BAIRRO ANTIGO)
A meio caminho entre Zagreb e Zadar, onde se pega a costa, há o Parque Nacional de Plitviče, um conjunto de lagos, montanhas e cascatas, classificado como patrimônio universal pela UNESCO. É boa recomendação, mas não o suficiente para descrever a imensa beleza sagrada do lugar, com suas trilhas, suas corredeiras e remansos, transparentes e musicais.

PLITVICE: PARQUE NACIONAL
Ao chegar-se ao mar, vira-se para o sul, e aí uma sucessão de cidades históricas ameaça confundir o viajante desatento. São muitas. E é preciso anotar na memória, digital de preferência, experiências que atendem pelo nome de Šibenik, Primošten, Trogir, e manter bem guardadas as sensações de mergulho na Idade Média e na Renascença que as vielas estreitas, as igrejas, a pedra calcária das paredes, os campanários e o silêncio nos proporcionam. Em Split, o mergulho nos leva mais para trás, para o Império Romano, vibrante ainda no Palácio de Diocleciano onde, além das colunas e das esculturas, uma representação ao vivo ressuscita centuriões e tribunos.

ZADAR: FORUM ROMANO













TROGIR: TORRE DO RELÓGIO








SPLIT: PALÁCIO DE DIOCLECIANO



























DUBROVNIK

E aí, Dubrovnik. Cantada em prosa e verso por todas as publicações de viagens, esta Pérola do Adriático suplanta todas as expectativas. Tudo converge para a cidadela murada, um núcleo fundado no século VII e que ganhou status como poder naval, sob administração de Veneza, entre 1208 e 1358. Cidade livre, após este período, manteve sua importância até ser quase destruída por um terremoto em 1667. Recompôs-se. Foi bombardeada na guerra de 1991-1995. Recompôs-se de novo. E manteve-se como um dos mais conceituados exemplos de arquitetura de cidades intra-muros da Alta Idade Média. Tudo é para ser visto, em lenta caminhada pelas ruas, pelas escadinhas, pelos átrios, pelas muralhas, pelo cais. À noite, a magia aumenta, principalmente quando uma lua quase cheia prateia as ondas que batem nas pedras ao pé do Forte Lovrinejac. Para os aficionados da série Game of Thrones, só Dubrovnik poderia corporificar a mítica cidade de King’s Landing.

DUBROVNIK E A LUA


BÓSNIA HERZEGOVINA
A Croácia é solar; a Bósnia é sombria. Não no sentido sinistro do termo, mas na imagem de um povo mais introspectivo, cuja simpatia, embora presente, não é tão álacre e bem-humorada como a dos seus vizinhos.

A paisagem humana é marcadamente diversa, com fortes traços muçulmanos, já não tão eslava e nem tão ruidosa. Há silêncio e há minaretes em todas as vilas, cantos de muezins chamando à prece, bazares de arabescos e de memorabilia da guerra. Aqui, as cicatrizes estão mais abertas, senão na alma, pelo menos nas paredes esburacadas pelas balas, nos edifícios em ruínas que aqui e ali, mesmo na capital Sarajevo, ainda esperam pela pátina do esquecimento.
MOSTAR: PONTE VELHA



CEVAPCI
Mas há muito turismo, principalmente em enclaves históricos como a vila de Mostar, cujo nome advém da inversão das palavras stari most, que significam ponte antiga. E esta ponte, construída no século XVI pelos turcos sob as ordens de Suleiman, o Magnífico, é hoje considerada o melhor exemplo existente da engenharia medieval da época e ponto de visita obrigatório para quem vai da costa para o norte. Ao longo do rio Neretva, agradáveis restaurantes, de preços ainda mais agradáveis, oferecem iguarias regionais, como o ćevapci (carne moída prensada em rolinhos com um enorme pedaço de pão macio). E ótima cerveja.


MONTENEGRO


O nome é Crna Gora (literalmente, Negro Monte). E eles são, mesmo, imponentes, às vezes recortados contra o azul do céu, às vezes duplicados ao inverso nas águas mansas de algum lago. São 13 mil km² e cerca de 650 mil habitantes, um terreno montanhoso (et pour cause...) e uma costa salpicada de pequenas praias tranquilas. No século IX, príncipes eslavos reinaram por aqui, sendo absorvidos com o tempo pelo Império Bizantino. Turcos, e depois vênetos, dominaram a região até que sérvios e albaneses entrassem na disputa. Todas essas correntes culturais podem ser observadas em locais preservados, como a vila de Kotor, parada no tempo e na história.

KOTOR: CIDADE VELHA
















Assim são eles, os Bálcans. Cheios de luz, de sombras, de promessas e de lembranças. Um caldo cultural e humano. Um caleidoscópio. 


Oswaldo Pereira
Setembro 2014





Um comentário:

  1. Em Mostar, na rua principal, comemos num restaurante cujo proprietario era muçulmano e assim, "pas d'alcool" ; nem provei o ćevapci, que me pareceu bem gostosinho pela sua descrição. Comi outros pratos. Eu não gosto de cerveja, mas para quem gosta faltou naquela hora do almoço. Achei o povo "down". Talvez por causa da guia que so contava miséria, fiquei impressionada ... Fi²

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