Não sei quantos visitantes deste modesto blog têm idade suficiente ou, se a têm, moravam no Brasil, para lembrarem-se dos acontecimentos ocorridos no país em março de 1964. Afinal, já lá vai meio século.
Na época, eu estava na flor dos meus 23 anos, formara-me
em Direito quatro meses antes e, em fevereiro, fora admitido na General Electric
S.A. Era, assim, um cidadão em plena posse de sua capacidade de ver, escutar e
procurar entender o que se passava. Desta forma, não me estou referindo aos
acontecimentos por ter lido sobre eles ou ouvir dizer. Eu tenho a prerrogativa
de falar na primeira pessoa do singular. Eu estava lá.
Lá
era
um Brasil procurando seu rumo político, ainda em meio choque após a
surpreendente renúncia de Jânio Quadros, tentando digerir o que se seguira, a
tentativa de impedir a posse do Vice-Presidente João Goulart, o tour de force de um Parlamentarismo
esdrúxulo e de vida breve, a volta do Presidencialismo, vai-e-vens que abriam vácuos na cena institucional. Economicamente,
se de um lado o país começava a colher alguns frutos do processo de
industrialização disparado por Juscelino Kubitschek, por outro se via a braços
com uma insuportável pressão inflacionária gerada pelos custos estratosféricos da
construção de Brasília, suportados pelo desmantelamento dos fundos
previdenciários e pela emissão desenfreada de moeda. Exportávamos commodities e importávamos petróleo. Socialmente,
todo o mecanismo de distribuição de renda ainda era pífio e a pirâmide de
riqueza perversamente elitizada e corporativista. Para azedar ainda mais o
caldo, o Governo do recém-criado Estado da Guanabara (correspondente à região
metropolitana da ex Capital, o Rio de Janeiro) era ocupado por um dos maiores e
mais temidos tribunos políticos da época, o carismático, e aspirante a
Presidente, Carlos Lacerda. Sua queda de braço com o Poder Central era o prato
do dia.
Lá
também
era um mundo extremamente polarizado pela Guerra Fria. Estados Unidos e União
Soviética, que por sua vez mantinha uma relação de amor e ódio com a China de
Mao, trocavam insultos para a plateia, flexionavam os músculos de seus
arsenais, apostavam corrida para a Lua e inspiravam uma legião de escritores de
spy novels. Mas, havia um balanço
nervoso. Ninguém estava mesmo a fim de apertar o botão vermelho e destruir o
planeta. O que cada lado almejava era manter os seus quintais. A América, o
Continente Americano e a parceria com a Europa Ocidental; os Russos, a Europa
de Leste e, com os chineses, todo o Extremo Oriente. África e Oriente Próximo
eram free for all e área de conflitos
tribais e religiosos. Só que, em
1959, alguém baralhara as cartas da maneira errada. Fidel Castro. A existência
de uma Cuba vermelha debaixo da barriga dos yankees
era motivo de êxtase para o mundo comunista; para Tio Sam, uma verdadeira pain in the ass. Três anos depois,
Kennedy e Khruschev haviam ficado cara a cara por causa da ilha caribenha. A
coisa foi arreglada no último minuto
com trocados (a volta dos cargueiros soviéticos, a demolição de uma base de
mísseis inoperantes na Turquia), mas o recado estava dado – os Estados Unidos
não iriam admitir outra brincadeira no seu quintal.
E, então, chega 1964. Afilhado político do
socialismo de Getúlio Vargas, Goulart dele não herdara nem a persona política nem a sagacidade de
estadista. A rigor, Jango estava
enredado num Congresso conservador e não conseguia despertar o fervor popular
que seu padrinho manejara com maestria. A única saída para ganhar peso eleitoral
era aproximar-se das lideranças comunistas das ligas camponesas, do
sindicalismo e dos escalões mais baixos das Forças Armadas, todos inspirados
pela retórica de Fidel e Che Guevara, cuja missão auto imposta era disseminar a
revolução soviética por toda a América abaixo do Rio Grande (Rio Grande ao sul do Texas, bem entendido...). Goulart acabou sendo cooptado por elas e
tornando-se refém da intensa pressão que exerciam para que ele acelerasse o
processo de reforma que guindaria o país para a esquerda. Já se sentia algo no
ar, pronunciamentos de parte a parte, de ministros do Governo, de parlamentares
dos diversos partidos, dos altos escalões militares, num fogo cruzado
inquietante, quando a Presidência da República anunciou a realização do Comício
do dia 13 de março.
O que entrou para a História como o Comício da
Central, por ter sido realizado em frente à estação ferroviária da Central do
Brasil, no Rio de Janeiro, reuniu quase 200 mil pessoas, com transmissão via
rádio e TV. No palanque, ou próximo a ele, aglomerava-se a nata da militância
de esquerda do trabalhismo, dos movimentos rurais, dos clubes de cabos e
sargentos, das centrais sindicais, da inteligentzia
social-comunista do país. Mas não foi isso que marcou o dia ou que detonou
o que viria a seguir. Foi o discurso de Jango.
Numa oração de quase uma hora, que logo de início
atacava o status quo da organização
político-social vigente, ele anunciou que havia promulgado uma série de atos do
Executivo cujo objetivo imediato era implantar as bases de uma ampla reforma
agrária, com a desapropriação de terras e sua distribuição para camponeses e
pequenos agricultores. Ao mesmo tempo, havia encampado todas as refinarias
particulares e preparava-se para promover uma reforma política que, além de dar
o direito de voto ao analfabeto, proporcionaria a “renovação” do Congresso
Nacional, privilegiando a inclusão de operários, camponeses e sargentos. Quase a cada frase, a multidão irrompia em
aplausos e gritos de ordem.
Os dias seguintes foram frenéticos. Reagindo ao
soco no estômago e à iminência de uma verdadeira revolução promovida pelo
próprio Governo, a oposição parlamentar, as grandes organizações patronais, a
mídia conservadora e as Forças Armadas reagiram e começaram a preparar a
deposição do Presidente. Precisavam apenas de dois avais. Um, o da Sociedade,
que respondeu organizando mega manifestações de rua em repúdio às propostas de Jango, e batizadas com o significativo título de “Marchas da Família com Deus e pela Liberdade”. Foram várias, em várias cidades. Em São
Paulo, mais de 500 mil; no Rio, quase um milhão. Outro, o dos irmãos do Norte. Para os Estados Unidos,
um Brasil comunista seria uma catástrofe, outro revés inadmissível em seu
quintal.
Dezoito dias após o Comício da Central, com o
beneplácito dos Governos de Minas, São Paulo e Guanabara, o Exército avançou.
Sem o disparo de um só tiro, dominaram Brasília e todos os centros nevrálgicos
importantes. Oferecendo nenhuma resistência, João Goulart e seus seguidores
mais próximos deixaram o país. Iria começar mais um capítulo da vida nacional, que duraria 21 anos. Mas, isto já é outra história...
Oswaldo
Pereira
Março
2014
A história está se repetindo! Algo mais se repetirá?
ResponderExcluirComo bem disse o Wilson o cenário começa a ficar parecido, com cara de déjà vu.
ResponderExcluirContada a história com a exatidão de fatos maiores acontecidos.
ResponderExcluirPergunto porque você não envia para o Jornal "O Globo", e para o Estadão?
É sempre bom recordar a verdade em nossa história.
Parabéns, Oswaldo. Abraço da amiga,
Cleusa.