quarta-feira, 12 de março de 2014

MARÇO 1964



Não sei quantos visitantes deste modesto blog têm idade suficiente ou, se a têm, moravam no Brasil, para lembrarem-se dos acontecimentos ocorridos no país em março de 1964. Afinal, já lá vai meio século.

Na época, eu estava na flor dos meus 23 anos, formara-me em Direito quatro meses antes e, em fevereiro, fora admitido na General Electric S.A. Era, assim, um cidadão em plena posse de sua capacidade de ver, escutar e procurar entender o que se passava. Desta forma, não me estou referindo aos acontecimentos por ter lido sobre eles ou ouvir dizer. Eu tenho a prerrogativa de falar na primeira pessoa do singular. Eu estava lá.

era um Brasil procurando seu rumo político, ainda em meio choque após a surpreendente renúncia de Jânio Quadros, tentando digerir o que se seguira, a tentativa de impedir a posse do Vice-Presidente João Goulart, o tour de force de um Parlamentarismo esdrúxulo e de vida breve, a volta do Presidencialismo, vai-e-vens que abriam vácuos na cena institucional. Economicamente, se de um lado o país começava a colher alguns frutos do processo de industrialização disparado por Juscelino Kubitschek, por outro se via a braços com uma insuportável pressão inflacionária gerada pelos custos estratosféricos da construção de Brasília, suportados pelo desmantelamento dos fundos previdenciários e pela emissão desenfreada de moeda. Exportávamos commodities e importávamos petróleo. Socialmente, todo o mecanismo de distribuição de renda ainda era pífio e a pirâmide de riqueza perversamente elitizada e corporativista. Para azedar ainda mais o caldo, o Governo do recém-criado Estado da Guanabara (correspondente à região metropolitana da ex Capital, o Rio de Janeiro) era ocupado por um dos maiores e mais temidos tribunos políticos da época, o carismático, e aspirante a Presidente, Carlos Lacerda. Sua queda de braço com o Poder Central era o prato do dia.

também era um mundo extremamente polarizado pela Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética, que por sua vez mantinha uma relação de amor e ódio com a China de Mao, trocavam insultos para a plateia, flexionavam os músculos de seus arsenais, apostavam corrida para a Lua e inspiravam uma legião de escritores de spy novels. Mas, havia um balanço nervoso. Ninguém estava mesmo a fim de apertar o botão vermelho e destruir o planeta. O que cada lado almejava era manter os seus quintais. A América, o Continente Americano e a parceria com a Europa Ocidental; os Russos, a Europa de Leste e, com os chineses, todo o Extremo Oriente. África e Oriente Próximo eram free for all e área de conflitos tribais e religiosos. Só que, em 1959, alguém baralhara as cartas da maneira errada. Fidel Castro. A existência de uma Cuba vermelha debaixo da barriga dos yankees era motivo de êxtase para o mundo comunista; para Tio Sam, uma verdadeira pain in the ass. Três anos depois, Kennedy e Khruschev haviam ficado cara a cara por causa da ilha caribenha. A coisa foi arreglada no último minuto com trocados (a volta dos cargueiros soviéticos, a demolição de uma base de mísseis inoperantes na Turquia), mas o recado estava dado – os Estados Unidos não iriam admitir outra brincadeira no seu quintal.

E, então, chega 1964. Afilhado político do socialismo de Getúlio Vargas, Goulart dele não herdara nem a persona política nem a sagacidade de estadista. A rigor, Jango estava enredado num Congresso conservador e não conseguia despertar o fervor popular que seu padrinho manejara com maestria. A única saída para ganhar peso eleitoral era aproximar-se das lideranças comunistas das ligas camponesas, do sindicalismo e dos escalões mais baixos das Forças Armadas, todos inspirados pela retórica de Fidel e Che Guevara, cuja missão auto imposta era disseminar a revolução soviética por toda a América abaixo do Rio Grande (Rio Grande ao sul do Texas, bem entendido...). Goulart acabou sendo cooptado por elas e tornando-se refém da intensa pressão que exerciam para que ele acelerasse o processo de reforma que guindaria o país para a esquerda. Já se sentia algo no ar, pronunciamentos de parte a parte, de ministros do Governo, de parlamentares dos diversos partidos, dos altos escalões militares, num fogo cruzado inquietante, quando a Presidência da República anunciou a realização do Comício do dia 13 de março.

O que entrou para a História como o Comício da Central, por ter sido realizado em frente à estação ferroviária da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, reuniu quase 200 mil pessoas, com transmissão via rádio e TV. No palanque, ou próximo a ele, aglomerava-se a nata da militância de esquerda do trabalhismo, dos movimentos rurais, dos clubes de cabos e sargentos, das centrais sindicais, da inteligentzia social-comunista do país. Mas não foi isso que marcou o dia ou que detonou o que viria a seguir. Foi o discurso de Jango.
 
JANGO DISCURSANDO. A SEU LADO, A PRIMEIRA DAMA MARIA TERESA


Numa oração de quase uma hora, que logo de início atacava o status quo da organização político-social vigente, ele anunciou que havia promulgado uma série de atos do Executivo cujo objetivo imediato era implantar as bases de uma ampla reforma agrária, com a desapropriação de terras e sua distribuição para camponeses e pequenos agricultores. Ao mesmo tempo, havia encampado todas as refinarias particulares e preparava-se para promover uma reforma política que, além de dar o direito de voto ao analfabeto, proporcionaria a “renovação” do Congresso Nacional, privilegiando a inclusão de operários, camponeses e sargentos.  Quase a cada frase, a multidão irrompia em aplausos e gritos de ordem.




Os dias seguintes foram frenéticos. Reagindo ao soco no estômago e à iminência de uma verdadeira revolução promovida pelo próprio Governo, a oposição parlamentar, as grandes organizações patronais, a mídia conservadora e as Forças Armadas reagiram e começaram a preparar a deposição do Presidente. Precisavam apenas de dois avais. Um, o da Sociedade, que respondeu organizando mega manifestações de rua em repúdio às propostas de Jango, e batizadas com o significativo título de “Marchas da Família com Deus e pela Liberdade”.  Foram várias, em várias cidades. Em São Paulo, mais de 500 mil; no Rio, quase um milhão. Outro, o dos irmãos do Norte. Para os Estados Unidos, um Brasil comunista seria uma catástrofe, outro revés inadmissível em seu quintal.

MARCHA DA FAMÍLIA EM S. PAULO

Dezoito dias após o Comício da Central, com o beneplácito dos Governos de Minas, São Paulo e Guanabara, o Exército avançou. Sem o disparo de um só tiro, dominaram Brasília e todos os centros nevrálgicos importantes. Oferecendo nenhuma resistência, João Goulart e seus seguidores mais próximos deixaram o país. Iria começar mais um capítulo da vida nacional, que duraria 21 anos. Mas, isto já é outra história...


Oswaldo Pereira
Março 2014







3 comentários:

  1. A história está se repetindo! Algo mais se repetirá?

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  2. Como bem disse o Wilson o cenário começa a ficar parecido, com cara de déjà vu.

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  3. Contada a história com a exatidão de fatos maiores acontecidos.
    Pergunto porque você não envia para o Jornal "O Globo", e para o Estadão?
    É sempre bom recordar a verdade em nossa história.
    Parabéns, Oswaldo. Abraço da amiga,
    Cleusa.

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