segunda-feira, 31 de março de 2014

PRESENTE





Não aguardo, não antecipo, não espero. Não quero o amanhã como bandeira. Não vivo o futuro. Nem que eu queira sucumbir à esperança, o quando aqui não está. O porvir não é, apenas será. Mas só quando vier, quando estiver aqui ao meu lado. Agora, nem sombra dele, nem um fio, pavio de vela. Ainda por acender. E este hoje logo será um ontem. Será tempo inerte, seguro, dócil, sem surpresas. Passamos os dias a colecionar ontens, a catalogá-los em prateleiras virtuais, passatempo cruel que nos empurra. Sem querermos.

Eu não quero muito. Eu quero mais.  Quero encilhar o Tempo, quero senti-lo corcel dominado das minhas vontades, meu escravo. Quero prendê-lo em cadeias, em correias, em peias. Quero tê-lo ali, algemado, refém de um gesto, um aceno meu para mover-se. Quero sustar a carruagem de fogo que cruza os céus, a sombra que avança num relógio solar, a maré dos segundos, o vendaval dos minutos, o passo das horas. Quero sustar equinócios e solstícios, rotações e precessões. Quero quebrar ampulhetas, enganar calendários, vigarizar folhinhas.

Eu não quero inventar a máquina do Tempo. Não vou cheirar o pó de pirlimpimpim, atravessar o portal das eras, entrar no Expresso 2222, nem para antes, nem para depois. Meu sonho é o Já, imutável, amovível, espraiado lânguido como uma paisagem de Turner, sem pressas, repetindo-se ad nauseam como o Bolero de Ravel.  Meu céu é o Agora, minha sina o Momento, meu deus o Presente.


Oswaldo Pereira

Março 2014

sábado, 22 de março de 2014

CASTING

Em inglês, o verbo to cast possui diversos significados. Pode ser traduzido como arremessar, lançar, projetar, moldar. Consequentemente, o seu substantivo, cast, pode ser entendido como lançamento, arremesso, moldagem ou molde, com vários derivados. O gesso que serve de imobilização para uma fratura, por exemplo, é chamado de cast. Cast também é usado para indicar matiz de uma cor e até, em alguns casos, é sinônimo de device, ou seja, um dispositivo ou um aparelho.

Mas, um dos usos mais conhecidos da palavra é o de ser empregado no sentido de elenco, isto é, o rol de atores convidados a atuar numa peça ou num filme. To cast passa então a significar selecionar, escolher e casting a ação de encontrar o artista ideal para um determinado papel. É fácil perceber a crucial importância do casting na montagem de um espetáculo artístico. Uma escolha equivocada pode determinar o completo fracasso de uma produção milionária. No sentido contrário, uma boa seleção salva um roteiro medíocre. É um trabalho eminentemente profissional, que une produtores, diretores e incontáveis agências patrocinadoras de estrelas, cujo “patrimônio” em termos de atrizes e atores sob contrato pode gerar alguns bons milhões de dólares.   

E é neste conjunto de forças que as negociações acontecem. Em pauta, estão talento, popularidade, disponibilidade e preço. Dizem que alguns outros expedientes mais íntimos também trabalham a favor, ou contra. Não importa. Tudo depende do objetivo maior, que interessa tanto a quem está bancando a aventura, como aos que verão seus nomes ligados a ela. Um flop contundente pode diminuir substancialmente a conta bancária dos Studios e destruir várias carreiras. Um megahit, uma nomeação para os inúmeros prêmios em voga, um sucesso de bilheteria poderão produzir fortunas instantâneas e a idolatria universal.

A História do Cinema está cheia de ambos. Há castings sensacionais, que entraram para os anais da indústria como paradigmas de uma escolha certa, desde Rodolfo Valentino em The Sheik até Matthew McConaughey em Dallas Buyers Club. É preciso um agudo faro para balancear aptidões natas para determinado papel, capacidade interpretativa para se adaptar a ele e salário dentro do orçamento. E há várias estirpes de atores. Há os que se repetem e tornam sua personalidade um ativo altamente vendável, moldando o personagem que representam àquilo que são, criando um estilo, como Laurence Olivier, John Wayne,  Harrison Ford ou Elizabeth Taylor. E há os camaleões, que se transfiguram para “entrar” na persona que o roteiro cria, ficando quase irreconhecíveis para compor o tipo que o texto requer. Johnny Depp, Meryl Streep, Sir Alec Guinness, Anthony Hopkins e tantos outros aí se classificam. Alguns pisam a fina linha divisória entre uma coisa e outra, como Marlon Brando, que tanto podia ser um oficial nazista em The Young Lions, um capo mafioso em The Godfather ou um militar renegado em Apocalypse Now. Mas, a famosa Brando stance, a inconfundível (e estupenda, diga-se de passagem) marca registrada do ator estava lá, vibrando debaixo do disfarce.

Quando, entretanto, a produção refere-se à biografia de alguém, a coisa complica-se mais um pouco. Como, geralmente, os biografados, e agora encenados, são figuras históricas, famosas, sobejamente conhecidas e, em muitos casos, objetos até de culto ou admiração, é natural que o público espere uma simbiose o mais perfeita possível entre ator e representado, inclusive em termos de proximidade física, convincente o bastante para tornar verossímil a representação. E aí, a solução é encontrar alguém que tenha naturalmente o physique du rôle ou talento suficiente para, com algumas ajudas da turma do make-up, resolver o problema. Já vi de tudo. Na categoria de atores pouco parecidos com seus personagens, mas cuja arte dramática conseguiu fazer com que efetivamente se visse o biografado, eu citaria como exemplo Leonardo DiCaprio em The Aviator (O Aviador). Embora fisicamente nada parecido com o excêntrico Howard Hughes, o ator o fez reaparecer autêntico e reconhecível. No mesmo filme, a extraordinária Cate Blanchett ressuscita, inteira e viva, a memorável Katharine Hepburn. Outro exemplo? George C. Scott em Patton. Mesmo passando para debaixo do tapete o fato de que a voz anasalada e roufenha que Scott usa nada tenha a ver com o registro altíssimo, quase infantil, do famoso general, a poderosa interpretação do ator é extremamente convincente. Querem mais? Helen Mirren em The Queen, Meryl Streep (sempre ela) em The Iron Lady, Kirk Douglas (como um atormentado Van Gogh) em Lust for Life, Robert Downey Jr em Chaplin, Jamie Foxx em Ray, Marion Cotillard em La Môme e o nosso Caco Ciocler, um irrepreensível Luiz Carlos Prestes em Olga.

Mas, quando, além de talento, o ator ainda parece-se fisicamente com o personagem histórico, aí é o melhor dos mundos. Clássicos como Ben Kingsley em Gandhi, Daniel Day-Lewis em Lincoln, Salma Hayek em Frida, Bruno Ganz em Der Untergang estão aí para confirmar. Então, resolvi oferecer algumas sugestões aos nossos amigos produtores e cineastas. Por exemplo:

.Cuba Gooding Jr para o papel de Louis Armstrong


.Liam Neeson para representar o jovem Fidel Castro



.Brad Pitt para fazer a vida de James Dean



.Jean Dujardin como Gene Kelly



.Kevin Kline representando Errol Flynn




E, last but not least, Jonathan Pryce para o papel principal de Papa Francisco…




Oswaldo Pereira

Março 2014

segunda-feira, 17 de março de 2014

PAPO DE BAR - AÍ VEM A COPA





«É um absurdo! Os caras que fizeram isto deveriam ser expulsos do país. São uns apátridas, são uns calabares, traidores da pior espécie. Se...»














«Que é isso, Bira! tão nervoso. Que caras são esses, do que você está falando?»







«Você não viu? circulando no Face. São duas sacanagens contra o Brasil. E feitas por brasileiros! Uma, num filmete, um garota metida a besta, dando uma de antenada e falando em inglês, desanca a realização da Copa, falando de corrupção, ineficiência e aconselhando, com ares de grande entendida, os estrangeiros a NÃO virem para cá. Outra, é uma matéria sobre um suposto artigo que saiu no France Football. Afirmando que o texto foi censurado aqui, o que é uma rematada estupidez, começa a enumerar o que estaria escrito na reportagem e fazendo comparações com o que se pratica aqui e na França, como se a França fosse um paraíso sem problemas. O artigo já está circulando a algum tempo e cada vez que ele aparece, vem com mais ataques ao Brasil, indicando que cada um que passa a assunto para a frente vai acrescentando suas idiotices e pondo a culpa na revista»

«Calma, cara. Isto é o território livre da Internet. Cada um pode por o que ache melhor. Quem quiser que acredite. Quem não quiser, pula o assunto»

«Pois não deveria ser assim. Isto é crime de lesa-pátria, um desserviço à Nação. Já não chegam os preconceitos sobre a nossa imagem, o encorajamento ao turismo sexual que são fomentados pelas agências de viagem lá fora, a distorção com que a imprensa mundial nos encara? Agora surgem esses imbecis fazendo coro com a mídia estrangeira, dando mais munição para eles nos distratarem. Bandidos!»

«Bem, eu vi estes dois virais. Você tem de convir que muita coisa dita ali não é propriamente uma inverdade. Que a Copa já custou mais do que qualquer outra é verdade. Que muitas das infraestruturas prometidas estão longe de ficarem prontas, é fato. Que...»

«legal, eu também sei. Mas esta roupa suja tinha de ser lavada em casa e não ficarem espalhando pelo planeta inteiro.  É hora de mostrar o que nós temos de melhor, e não o contrário. Objeções à realização do campeonato mundial sempre foram motivo de controvérsias nos países que o sediaram. Na África do Sul, no Japão, até na Alemanha. Mas foi uma coisa interna. Prá fora, eram só sorrisos. Agora vêm esses caras expondo todas as nossas mazelas. Não vêem que é um tiro no pé?»

«Pois eu acho que o problema é outro. O povo cansado de tantos desmandos com a coisa pública. Precisava gastar tanta grana com estádios que depois vão cair aos pedaços porque não vai haver renda para suportá-los, enquanto faltam hospitais minimamente decentes, estradas pelo menos transitáveis, portos eficientes, escolas sem goteiras e com carteiras? Onde estão as prioridades?»

«Ora, desmandos sempre existiram.  E o conceito de prioridade depende de pontos de vista. Durante muito tempo, reclamou-se que o Brasil, cinco vezes campeão do mundo, já merecia sediar outra Copa. Já lá vão 64 anos da última. Quando o país se candidatou, há mais de sete anos, todos torceram para que ganhássemos. Então, que revolta é essa agora?»

«É que muita coisa aconteceu de lá para cá. Eu sei que não tinha mais volta, mas os gastos estão excedendo o limite do razoável. Esta brincadeira vai custar mais do que as duas últimas copas, a da Alemanha e a da África do Sul, somadas!»

«E daí? Você tem de entender que somos um país continental. É o maior país a sediar o Campeonato da história. Em 1950, os jogos ficaram pelo Rio, São Paulo e Minas. Não havia os cadernos de encargos que hoje existem. O certame era modesto e não tinha a projeção global de agora. Hoje é tudo diferente, as exigências são enormes. São 32 times. Em 50 foram só 12...»

«Ora, você sabe que só isso não justifica o nível dos gastos. As últimas Copas já foram realizadas dentro dos novos formatos e não chegaram nem perto nas despesas. Deve ter muito caroço nesse angu, os jornais vivem levantando suspeitas de corrupção em alta escala»

«E é só aqui que tem corrupção, é? E o que se fala da FIFA, o que é? O Blatter está mergulhado até as orelhas em denúncias e ainda vem aqui dando uma de bom moço. Vai ver se há cidadãos suíços colocando filminhos no You Tube falando mal dele. Todo a gente procura esconder seus defeitos dentro das suas fronteiras. Quando queimam centenas de carros em Paris, os franceses fingem-se de mortos. Quando o pau come nas favelas de Marselha, também. Só aqui é que existe esta mania de expor as feridas para o mundo ver»

«E é só o começo, amigão. Já há programações para mega protestos durante  a realização da Copa. Vão aproveitar que os holofotes estarão apontados para cá e mostrar ao planeta a insatisfação, o repúdio contra a situação do país, você vai ver...»

«Mas, isto é uma insensatez, cara. Por que não deixam para mostrar isso nas urnas, três meses depois? Se estão contra tudo o que está aí, se não acreditam mais nos políticos e nas instituições, por que não votam em branco, não anulam o voto. Aí sim, é a maneira mais clara de mostrar insatisfação e repúdio. Se mais da metade dos brasileiros inutilizasse seu voto, aí tinha de acontecer alguma coisa. Aí o mundo iria saber realmente o que sentimos. Manifestações abrem a porta para os baderneiros, os black blocs boçais e acabam virando um reles quebra-quebra»

«Voto nulo? Acho difícil, companheiro. Iria precisar uma campanha de convencimento a nível nacional. Quem vai bancar isso?»

«Ué, aí está o território livre da Internet, como você mesmo falou. Face, twitter, You Tube, whats app e outras redes. É só começar...»

«Isto não cobre nem 40% da população. E ainda existem muitos currais eleitorais, gente que vota a troco de cargos, financiamentos, até de óculos e dentaduras. É muito difícil, amigo. O jeito é mesmo ir para a rua e protestar. Isto em condições normais. Agora, imagina só se não ganhamos a Copa...»

«Meu Deus!...»

Oswaldo Pereira
Março 2014









quarta-feira, 12 de março de 2014

MARÇO 1964



Não sei quantos visitantes deste modesto blog têm idade suficiente ou, se a têm, moravam no Brasil, para lembrarem-se dos acontecimentos ocorridos no país em março de 1964. Afinal, já lá vai meio século.

Na época, eu estava na flor dos meus 23 anos, formara-me em Direito quatro meses antes e, em fevereiro, fora admitido na General Electric S.A. Era, assim, um cidadão em plena posse de sua capacidade de ver, escutar e procurar entender o que se passava. Desta forma, não me estou referindo aos acontecimentos por ter lido sobre eles ou ouvir dizer. Eu tenho a prerrogativa de falar na primeira pessoa do singular. Eu estava lá.

era um Brasil procurando seu rumo político, ainda em meio choque após a surpreendente renúncia de Jânio Quadros, tentando digerir o que se seguira, a tentativa de impedir a posse do Vice-Presidente João Goulart, o tour de force de um Parlamentarismo esdrúxulo e de vida breve, a volta do Presidencialismo, vai-e-vens que abriam vácuos na cena institucional. Economicamente, se de um lado o país começava a colher alguns frutos do processo de industrialização disparado por Juscelino Kubitschek, por outro se via a braços com uma insuportável pressão inflacionária gerada pelos custos estratosféricos da construção de Brasília, suportados pelo desmantelamento dos fundos previdenciários e pela emissão desenfreada de moeda. Exportávamos commodities e importávamos petróleo. Socialmente, todo o mecanismo de distribuição de renda ainda era pífio e a pirâmide de riqueza perversamente elitizada e corporativista. Para azedar ainda mais o caldo, o Governo do recém-criado Estado da Guanabara (correspondente à região metropolitana da ex Capital, o Rio de Janeiro) era ocupado por um dos maiores e mais temidos tribunos políticos da época, o carismático, e aspirante a Presidente, Carlos Lacerda. Sua queda de braço com o Poder Central era o prato do dia.

também era um mundo extremamente polarizado pela Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética, que por sua vez mantinha uma relação de amor e ódio com a China de Mao, trocavam insultos para a plateia, flexionavam os músculos de seus arsenais, apostavam corrida para a Lua e inspiravam uma legião de escritores de spy novels. Mas, havia um balanço nervoso. Ninguém estava mesmo a fim de apertar o botão vermelho e destruir o planeta. O que cada lado almejava era manter os seus quintais. A América, o Continente Americano e a parceria com a Europa Ocidental; os Russos, a Europa de Leste e, com os chineses, todo o Extremo Oriente. África e Oriente Próximo eram free for all e área de conflitos tribais e religiosos. Só que, em 1959, alguém baralhara as cartas da maneira errada. Fidel Castro. A existência de uma Cuba vermelha debaixo da barriga dos yankees era motivo de êxtase para o mundo comunista; para Tio Sam, uma verdadeira pain in the ass. Três anos depois, Kennedy e Khruschev haviam ficado cara a cara por causa da ilha caribenha. A coisa foi arreglada no último minuto com trocados (a volta dos cargueiros soviéticos, a demolição de uma base de mísseis inoperantes na Turquia), mas o recado estava dado – os Estados Unidos não iriam admitir outra brincadeira no seu quintal.

E, então, chega 1964. Afilhado político do socialismo de Getúlio Vargas, Goulart dele não herdara nem a persona política nem a sagacidade de estadista. A rigor, Jango estava enredado num Congresso conservador e não conseguia despertar o fervor popular que seu padrinho manejara com maestria. A única saída para ganhar peso eleitoral era aproximar-se das lideranças comunistas das ligas camponesas, do sindicalismo e dos escalões mais baixos das Forças Armadas, todos inspirados pela retórica de Fidel e Che Guevara, cuja missão auto imposta era disseminar a revolução soviética por toda a América abaixo do Rio Grande (Rio Grande ao sul do Texas, bem entendido...). Goulart acabou sendo cooptado por elas e tornando-se refém da intensa pressão que exerciam para que ele acelerasse o processo de reforma que guindaria o país para a esquerda. Já se sentia algo no ar, pronunciamentos de parte a parte, de ministros do Governo, de parlamentares dos diversos partidos, dos altos escalões militares, num fogo cruzado inquietante, quando a Presidência da República anunciou a realização do Comício do dia 13 de março.

O que entrou para a História como o Comício da Central, por ter sido realizado em frente à estação ferroviária da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, reuniu quase 200 mil pessoas, com transmissão via rádio e TV. No palanque, ou próximo a ele, aglomerava-se a nata da militância de esquerda do trabalhismo, dos movimentos rurais, dos clubes de cabos e sargentos, das centrais sindicais, da inteligentzia social-comunista do país. Mas não foi isso que marcou o dia ou que detonou o que viria a seguir. Foi o discurso de Jango.
 
JANGO DISCURSANDO. A SEU LADO, A PRIMEIRA DAMA MARIA TERESA


Numa oração de quase uma hora, que logo de início atacava o status quo da organização político-social vigente, ele anunciou que havia promulgado uma série de atos do Executivo cujo objetivo imediato era implantar as bases de uma ampla reforma agrária, com a desapropriação de terras e sua distribuição para camponeses e pequenos agricultores. Ao mesmo tempo, havia encampado todas as refinarias particulares e preparava-se para promover uma reforma política que, além de dar o direito de voto ao analfabeto, proporcionaria a “renovação” do Congresso Nacional, privilegiando a inclusão de operários, camponeses e sargentos.  Quase a cada frase, a multidão irrompia em aplausos e gritos de ordem.




Os dias seguintes foram frenéticos. Reagindo ao soco no estômago e à iminência de uma verdadeira revolução promovida pelo próprio Governo, a oposição parlamentar, as grandes organizações patronais, a mídia conservadora e as Forças Armadas reagiram e começaram a preparar a deposição do Presidente. Precisavam apenas de dois avais. Um, o da Sociedade, que respondeu organizando mega manifestações de rua em repúdio às propostas de Jango, e batizadas com o significativo título de “Marchas da Família com Deus e pela Liberdade”.  Foram várias, em várias cidades. Em São Paulo, mais de 500 mil; no Rio, quase um milhão. Outro, o dos irmãos do Norte. Para os Estados Unidos, um Brasil comunista seria uma catástrofe, outro revés inadmissível em seu quintal.

MARCHA DA FAMÍLIA EM S. PAULO

Dezoito dias após o Comício da Central, com o beneplácito dos Governos de Minas, São Paulo e Guanabara, o Exército avançou. Sem o disparo de um só tiro, dominaram Brasília e todos os centros nevrálgicos importantes. Oferecendo nenhuma resistência, João Goulart e seus seguidores mais próximos deixaram o país. Iria começar mais um capítulo da vida nacional, que duraria 21 anos. Mas, isto já é outra história...


Oswaldo Pereira
Março 2014







sábado, 8 de março de 2014

ÀS MULHERES




À minha mulher, minhas filhas, minha nora, minhas netas e a todas as mulheres do mundo.


“Estou no fundo da caverna. Sou fêmea, sou parideira. Sou quem vela na noite fria, sou quem amamenta a cria.

Sou concubina do Faraó. Sou Rainha do Nilo. Sou escrava. Sou eu quem azeita as cordas que puxam os blocos de pedra. Sou tudo e sou nada.

Sou o esteio do lar. Sou mulher de Atenas. Também sou hetaira, poetisa, musa. Sou Helena de Tróia. Sou deusa no Monte Olimpo, sou Medusa, sou aquela que vê o Futuro, pitonisa, temida, amaldiçoada.

Sou Messalina, sou Vênus, sou Diana. Sou loba romana. Sou mulher de César. Venho da savana africana, sou vendida no mercado. Sou carne para os vencedores, entregue aos gladiadores.  Sou jogada na arena. Sou Maria, Madalena.

Sou mulher de Átila, sigo os exércitos. Às vezes me pinto e sou guerreira. Atravesso o gelo dos Alpes com um filho nos braços. De quem? Não sei. Somos bárbaros, sou cria da batalha, sou nascida pelas estradas do império que morre.

Sou castelã enclausurada. Sou Joana d’Arc, sou freira. Sou santa, sou feiticeira e ardo na fogueira dos homens. Valho menos que novilhas, me trocam por cabras, ovelhas. Sou menos que nada, sou estorvo.

Sou Mona Lisa, Julieta e Capuleto. Sou Bórgia, sou papisa. Sou amante, meretriz.  Também sou de Aviz, vendo meus homens partirem para além da Taprobana. Sou índia das Américas, vivo na China dos sonhos, meu filho mestiço será.

Sou Maria Antonieta, comam brioches enquanto minha cabeça me diz adeus na guilhotina.  Morro num minueto de tísica, sou La Marseilleise, parto para o Novo Mundo. Sou Carlota Joaquina, Catarina  de Bragança, mas longe está ainda a esperança de ser cidadã.

Napoleão matou meus filhos, meu marido e meu pai. Só vejo cruzes no lugar de arados. Enquanto eles constroem países nas Américas, eu desapareço na rotina num mundo de segunda classe.  A Revolução Industrial ferve nos altos fornos e eu continuo a limpar a fuligem do rosto de meus homens cansados.

Allez op! Aí vem o século da luzes. Paris rebrilha, o avião voa, o telefone fala, o navio afunda. Eu danço o can-can, empunho minha bandeira e quero falar, quero votar, quero SER. A Guerra vira hecatombe e eu vou para os hospitais, para as fábricas. Agora, eles vão ver o meu valor. Será?

Sou viúva, sou órfã, sou mãe a quem amputaram um filho. O pranto seco que não chora mais.  E eles não entendem, não ouvem. Estão vestindo novamente os uniformes, cheios de si. Vai-nos restar a espera. Vão ter que nos valer as preces. Cemitérios frios, nova lápides, invernos vazios.

Sou doméstica de luxo em anos dourados. Eles nos regalam, amorosos e confiantes. Uma nova batedeira, o fogão ultramoderno, a  lava louças que só falta falar. Mas, e EU?. Eu quero falar, eu quero dizer. Algumas de nós, com a coragem dos desatinos, cruzaram a fronteira.   Muitas foram abatidas pelo tiro certeiro do preconceito.

Finalmente, sou hippie, livre, leve e solta. Sou dona do meu ventre. A pílula parte as algemas e eu VOU. Ninguém me segura, sou energia pura. Aventais só por escolha, e quero mais. Quero o mundo, quero ir fundo na aventura de viver. Quero ser senhora do destino, dona do meu nariz. Vou partir. E você, quer vir?”





Oswaldo Pereira
Março 2014









terça-feira, 4 de março de 2014

DESTINOS CERTOS: CHICHEN-ITZÁ






Ano 1000 da era cristã.
O lugar está totalmente lotado. Nos degraus das duas enormes construções de pedra que flanqueiam o campo de jogo, a multidão incentiva sua equipe com gritos e amplos gestos. São agricultores, artesãos, peregrinos que vêm de todos os pontos da Península, de Izamal, de Mayapan, de Motul. A primeira fila de espectadores está sentada a nove metros de altura. Abaixo dela, uma parede reta vai até o chão de terra lisa. Exatamente na linha que divide o campo de 140 metros de extensão por 40 de largura, e a sete metros do solo, está esculpido, em cada lado da quadra, um anel. São dois times de cinco jogadores, cada um guarnecendo sua metade do campo. Vestem calções curtos, sandálias de couro e alguns têm proteções nas pernas. Entre eles, saltita uma esfera de látex negro, com quase 20 centímetros de diâmetro, pesando cerca de 4 quilos. Usando somente os ombros, os joelhos, os cotovelos e as ancas, perderão pontos se deixarem a bola bater mais de uma vez no chão de seu lado, antes de enviá-la para o território adversário, ou se permitirem que ela saia do campo pela linha traseira. Ganharão se conseguirem fazê-la passar pelo aro de pedra. Pok-ta-tok é um jogo sagrado. E violento. O impacto da borracha sólida em movimento frenético pode ferir seriamente e até matar se atingir com velocidade os jogadores. Faz parte. Ao final da peleja, o capitão dos vencedores decapitará ritualisticamente o líder dos derrotados. Assim manda o costume.

Os maias abandonaram o local no século XVI, pouco antes da chegada dos espanhóis. Mas, até então, e principalmente no período entre 900 e 1200 AD, sua época de ouro, Chichén-Itzá foi o mais importante centro religioso e cultural da península de Yucatán. Hoje é um sítio arquelógico com mais 20km quadrados e retem extraordinárias expressões arquitetônicas da civilização maia-tolteca.




PIRÂMIDE DE KUKULKÁN
Além do complexo desportivo, onde há mil anos o jogo da bola de borracha despertava emoções e selava destinos, o lugar abriga vários outros edifícios de caráter sagrado. O principal é a Pirâmide de Kukulkán, que os primeiros espanhóis a ali chegar chamaram de El Castillo. Tem quatro lados e 91 degraus. A multiplicação (91x4), e mais o terraço, somam 365. As faces representam as estações ou os pontos cardeais. Subir é relativamente fácil. Só que os degraus têm menos de 20 centímetros de largura, que praticamente desaparecem do campo de visão quando se chega lá em cima. Dá uma certa vertigem e frio na barriga, especialmente na hora de descer. A maioria vem de costas. A escada do lado norte tem, em sua ponta inferior, uma cabeça de serpente. Nos equinócios (21 de março e 21 de setembro), as sombras do poente jogam com a escultura e com os batentes da escadaria, desenhando um imenso réptil, que parece descer do topo como se descendesse do céu.

TEMPLO DOS GUERREIROS

A oeste da pirâmide está o Templo dos Guerreiros. É uma pirâmide baixa e retangular, o que lhe empresta um ar de solidez e de desafio ao tempo. O andar inferior está suportado por colunas que representam soldados, esculpidos em baixo relevo. No topo, ao final da escadaria central, há um magnífico chac-mool, que é a escultura de uma figura humana sentada, com os braços repousados e a cabeça virada para a esquerda. Seu simbolismo ainda permanece um mistério, como muitos que permeiam este sítio.

TOPO DO TEMPLO  E SEU CHAC-MOOL

PRAÇA DAS MIL COLUNAS
Ao longo da parede sul do Templo, está a Praça das Mil Colunas, com suas extensas fileiras de colunas de pedra, cada uma trabalhada com imagens de militares, sacerdotes, gente comum e até serpentes e animais. Há mil anos, deviam suportar um sistema de tetos que ligava o Templo dos Guerreiros ao Mercado, cujas ruínas ainda são visíveis.



CENOTE SAGRADO
A trezentos metros dali fica o lugar mais sombrio de Chichen-Itzá. O Cenote Sagrado. Trata-se de um enorme poço, com 60m de diâmetro, e uma água verde escura cuja superfície fica a 23 metros da borda. Era palco das rituais cerimônias de sacrifício em que as vítimas eram lançadas à morte para aplacar alguma maldição divina ou implorar por alguma graça. Tudo indica que a sacralização do Cenote precedeu a construção dos Templos e foi determinante na escolha da localização da cidade. Em meados do século XX, uma expedição arqueológica desceu até o fundo do poço (que tem 82m de profundidade) e encontrou mais de 50 esqueletos humanos, além de ossadas de animais e cerca de 4.000 objetos.  

Um lugar para banhos a vapor, um observatório celestial, capelas e ossários complementam o impressionante conjunto monumental de Chichen-Itzá e transpiram seu profundo conteúdo cultual. Parado em silêncio no centro do imenso espaço da praça principal, torna-se fácil imaginar um dia de festa em pleno apogeu maia. No alto da Pirâmide, senta-se o Rei, em frente a uma pira votiva, com seu enorme adorno de cabeça, uma multicolorida alegoria de penas, seu nariz adunco e seu olhar cruel observando o jogo que se desenrola abaixo. Generais, concubinas, ministros e servos o cercam em adoração constante. Em toda a área que cerca o edifício, milhares de pessoas vão e vêm, oferecendo presentes aos deuses menores e louvando o Deus-Rei que está sentado lá em cima em seu trono.

OBSERVATÓRIO DO CARACOL

Os maias foram uma civilização de guerreiros, cientistas e astrônomos. Dominaram Yucatán por quase 800 anos, antes de se fragmentarem e perderem sua hegemonia. Hoje sobrevivem em suas lendas, suas profecias, seus monumentos e na paisagem humana dessa região do México, onde seus inconfundíveis narizes aquilinos, olhos oblíquos e tez avermelhada estão por toda parte.

Oswaldo Pereira
Março 2014