Reza a História que a Peste Negra mudou o destino de Alcochete.
Provavelmente originária da Ásia Central, a terrível epidemia chegou à
Europa, em meados do século XIV, pelos caminhos da Rota da Seda. Seu veículo
transmissor foram as pulgas que infestavam os pelos dos ratos pretos,
hospedeiros que proliferaram com fantástica velocidade num ambiente onde havia
restos de alimentos, muita gente e nenhuma higiene. Atingindo o Continente Europeu
pela Crimeia, foi dizimando indiscriminadamente, e com extrema rapidez e
letalidade, os habitantes das cidades medievais em todos os países. Só entre
1348 e 1350, matou mais de 75 milhões de pessoas – um em cada três europeus. E
continuou matando durante um século. Foi a primeira e única vez na História que
a população mundial decresceu. Foram necessários 150 anos para que ela voltasse
ao nível pré-epidemia.
IGREJA MATRIZ DE ALCOCHETE |
Ninguém estava a salvo. Nem pobres, nem ricos, nem senhores, nem
camponeses. E nem Reis. Mas estes, pelo menos, tinham mobilidade assegurada, e
fugiam de suas capitais para refúgios em aglomerados menores, de bom clima e
bons ares. Assim, D. João I, Rei de Portugal, resolveu transferir-se para uma
pacata vila do outro lado do Tejo, onde o rio alargava a distância entre suas
margens, criando um quase-mar plácido e ensolarado, e que parecia longe o
bastante para protegê-lo das pulgas assassinas.
Esse lugar já era habitado desde o neolítico. Os romanos também haviam
estado por ali, fabricando ânforas para transporte de alimentos. Depois, vieram
os mouros. Sua atividade concentrou-se na agricultura, principalmente nos
citrinos e, para irrigá-la numa terra de pouca chuva, criaram um sofisticado
sistema de canais. Também construíram um forno, substantivo português cuja
tradução para o árabe é al caxet. O
nome ficou, mas os filhos de Alá foram varridos na reconquista cristã.
ESTÁTUA AO SALINEIRO - CENTRO VELHO |
Alcochete encontrou, então, sua primeira vocação sustentada, a extração de
sal marinho. Sal sempre foi sinônimo de pureza e, talvez por isso, tenha
atraído D. João I. Pureza e ar limpo pareciam bons antídotos contra a Peste.
Por via das dúvidas, seus descendentes resolveram ficar mais umas quantas
gerações no lugar, enquanto o perigo não se extinguia de todo. Graças a essa
decisão, a vila prosperou, tornando-se um pólo salineiro e um movimentado
entreposto, de onde partiam e aonde chegavam embarcações que atendiam a um
próspero comércio de mercadorias. Tornou-se também berço de infantes reais da
Dinastia de Avis. Em 1459, ali nasceu o mais famoso deles, pelo menos para nós
brasileiros, o futuro Rei D. Manuel I, dito o Venturoso, cujas naus foram
descobrir a Ilha de Vera Cruz.
POR-DO-SOL NO TEJO |
Mas, nada dura para sempre. Os reis se foram quando a Morte Negra foi
finalmente erradicada e, lentamente, a terra definhou. No século XIX, motivos de divergência política com Lisboa causaram-lhe a perda da autonomia municipal
para a Aldeia Gallega, hoje Montijo, ganha ainda ao tempo da residência real.
No século seguinte, sua postura historicamente antagônica ao Poder Central
transformou-se em renitente resistência ao Estado Novo de Salazar, com suas
previsíveis consequências. Paralelamente, o sal-gema já substituía com
vantagens econômicas o sal marinho, a construção da então Ponte Salazar (hoje
Ponte 25 de Abril) diminuía o fluxo do transporte marítimo entre a margens do
rio e a poluição destroçava uma piscicultura quase artesanal. Nem vocação
turística lhe sobrara, ofuscada pelas praias da Costa da Caparica.
Voltamos ao “nada dura para sempre”. Na década de 1990, outro evento veio
salvar Alcochete. Graças a Deus, não era outra Peste. Era outra Ponte.
Construída entre 1994 e 1998, a Ponte Vasco da Gama viria desaguar na
margem sul do Tejo a meros 4 quilômetros da cidade. De repente, Alcochete
ficara vizinha de porta de Lisboa, a apenas 18 quilômetros do Parque das Nações
e da Estação do Oriente, terminal de ligação de transportes terrestres urbi et orbi. Ou seja, um imã para quem
trabalhasse na capital, em saturação imobiliária, e desejasse morar numa
atraente suburbia.
Não deu outra. Em meses, a indústria da construção civil pôs-se a atender à
demanda. Felizmente para todos, o bom senso prevaleceu e não houve o mesmo
crescimento desordenado que transformara Almada e Barreiro em
cidades-dormitório, com seus imensos blocos escuros de apartamentos tristes.
Preservou-se o delicado e charmoso centro histórico, amenizou-se a fachada dos
novos prédios, arborizaram e floriram as rotundas. Na entrada da cidade,
instalou-se um dos mais famosos outlets da
Europa, o imenso mall do Free Port,
para o qual já há linhas de ônibus que trazem o turista sedento de boas
barganhas diretamente do Aeroporto da Portela.
Os que têm mais tempo vêm saborear as iguarias que povoam os cardápios de
uma variada oferta de ótimos restaurantes, atualmente elevando Alcochete à
categoria de point gastronômico por
excelência.
Acham que estou exagerando? Então venham conferir. De preferência no Verão,
quando a Praia dos Moinhos se colore durante o Festival Internacional de
Papagaios, as ondas brincam com os praticantes do kitesurf, a forte tradição taurina se reafirma nas touradas e
largadas da Festa do Barrete Verde e o ar fino se mistura à perfumada fumaça
que sobe dos assadores de sardinha espalhados pelas ruas do velho centro.
FESTA DO BARRETE VERDE |
FESTIVAL DE PAPAGAIOS |
FREE PORT OUTLET |
Os Reis de Avis tinham razão.
Oswaldo Pereira
Janeiro 2014