A vila dormia. Como sempre dormira, desde
seus primórdios, desde que as pequenas cabanas haviam sido escoradas de pau a
pique, o barro das paredes endurecido e o sapê as abrigado da chuva e do frio
da noite.
Lentamente, o casario foi-se transmutando em casebres
de tijolo, porta e janela sem contornos retos, toscas telhas mal encaixadas,
permitindo que sol e lua desenhassem figuras no chão de terra batida e gotas de
chuva salpicassem os poucos pertences de uma mobília rústica.
Depois, devagar, avançou. A primitiva
agricultura de grãos comestíveis foi alargando suas fronteiras pelo ermo
inculto. Pastos apareceram, gente chegou, carros de bois gemiam pela estrada
precária até terras vizinhas. Uma igreja brotou singela, uma escola nasceu no
alto da colina, o cemitério enterrou seus primeiros mortos.
Mas, por mais que se esforçassem, os
habitantes da pequena aldeia não conseguiam ser felizes. Tinham sempre de lutar
contra uma natureza ingrata e caprichosa, que com um simples sopro destruía
colheitas inteiras, secava os açudes onde o gado acabava por definhar até a
morte, castigava os telhados com granizo ou estorricava jardins criados com
dedicação e esmero.
Aos poucos, o povo entristecido e cansado
começou a acreditar que alguma pérfida maldição assombrava o vale de contornos
doces e o suave regato que o banhava. Haviam combatido, esperado, murmurado
promessas contritas, ajoelhado ao altar pedindo clemência. Debalde.
Na manhã daquele primeiro dia de inverno,
cujos malsinados efeitos começavam a enregelar a pele e as almas, o torpor da
derrota de há muito já havia drenado as últimas gotas de ilusão. O orvalho por
fim deixara de cair nas flores secas do desespero. O povo dormia, exausto e descrente.
Mas, apesar de frio, o sol nasceu, como
sempre fazia. Mais um dia começava e, um por um, os habitantes foram despertando
para suas rotinas sem cores, seus afazeres repetidos e inúteis, seu dia-a-dia
acabrunhado pela sorte sovina. Despertaram sonâmbulos como sombras encurvadas e
foram tentar vencer mais uma jornada sem fé.
De repente, uma trombeta soou pelos lados da
serra que servia de entrada à aldeia. A notícia se espalhou logo. O Circo estava
chegando!
Em minutos, a criançada correu lá pros altos
do cemitério e postou-se em ambos os lados da rua de terra. As janelas das primeiras
casas logo encheram-se de moradores, arrancados de seu desânimo pela voz
potente do Mestre de Cerimônias, apregoando as funções do espetáculo que iria
apresentar no dia seguinte.
«Atenção, muita atenção, Senhoras e Senhores.
O Gran Circo Dellavida está chegando! Preparem-se para o maior show da Terra.
Os maiores artistas do Mundo. A grande vidente Madame Verité, que dirá o que lhes
vai na alma. O famoso ilusionista Pangloss, cujas artes mágicas transformarão
seus dias em perene alegria. O destemido domador de feras reais e imaginárias Il
Grande Testafresca. A engraçadíssima dupla de palhaços Alto e Astral, que os farão
debochar da adversidade. E, o maior número de todos, a família de equilibristas
de fama internacional Os Incríveis Semmedos, que mostrarão como caminhar juntos
sobre um fio de esperança. Não percam! Amanhã, em soirée única, às sete da noite na praça!»
Era um final de tarde quando o Circo deixou a
aldeia. Ao espetáculo do dia anterior, todos haviam comparecido. E agora
acenavam, enquanto o desfile de despedida subia a colina. Quando a última
carroça sumiu no topo, Vênus brilhava num céu vespertino e sem nuvens.
Quem notou a mudança foi um ambulante que
havia passado pela vila meses antes e lembrava-se da imagem de uma comunidade
moribunda. Tudo havia mudado. As casas estavam pintadas de novo, a igreja
substituíra o sino quebrado, havia flores em profusão na praça e sorriso no
rosto das crianças. Perguntou às pessoas que passavam o que causara a grande
transformação. Foi embora sem entender a resposta.
Muitos passarão pela vida sem ver o Circo. Talvez
porque não o procurem direito. Talvez porque não acreditem nele e, mesmo
vendo-o, não o reconhecem. Mas, se um dia a vida tiver perdido o juízo e noite
não prometer amanhã, apurem os ouvidos. Quem sabe não ouvem a voz do mestre de
cerimônias, anunciando com garbo:
RESPEITÁVEL
PÚBLICO...
Oswaldo Pereira
Abril 2013
Que maravilha!!Muito bom.Me lembrou Paraguaçu e numa linha direta nos traz à realidade. Bj.
ResponderExcluirGostei muito !
ResponderExcluirEu sempre estou tentando ouvir a voz do mestre de cerimônias ... quando a gente consegue escutar a chamada, quem sabe fica mais alegre e feliz ?!
Afinal o circo nos "vende" alegria, se é possivel compra-la !
A+
Fi²
Ludico.......o despertar em cada um o seu circo imaginário.....adorei
ResponderExcluirCaro Primo,
ResponderExcluirNem seria necessário comentar que, seguindo a chamada Respeitável Público!, ouvi os acordes de Rosamunde, ou, para nós, Barril de Chopp, música que, invariavelmente era a trilha sonora dos circos de minha infância.
Geraldo