No meu último texto, eu escrevi mal tracejadas linhas sobre a agressividade que campeia pelas redes sociais e a opção pela polêmica e pelo confronto verbal nos relacionamentos sociais. Discute-se apaixonadamente por tudo e por nada, desde ideologias de gênero, vacinas contra a COVID e até se a Terra é redonda ou plana.
Como não podia deixar de ser, a morte de Diego Armando Maradona
acendeu nova cizânia, mesmo entre aqueles que nunca adentraram em um estádio de
futebol. Trincheiras de argumentação foram cavadas para defender ou atacar o
jogador, indo desde aqueles que o idolatram aos que o denigrem.
No cerne da disputa está a propalada dicotomia que, segundo a
maioria, segregou o fabuloso gênio da bola do homem amargo, instável e
subjugado pelo vício das drogas. É como se tratassem de duas pessoas,
irreconhecíveis e irreconciliáveis entre si, um ser bipartido que nem a mais
profunda bipolaridade conseguiria explicar.
Todas as mensagens de despedida, de amigos, de contemporâneos
dos gramados, de jornalistas e comentaristas esportivos, da gente comum que o
viu jogar, acentuavam esta imagem, tentando usar a figura de um Maradona
super-herói de chuteiras para compensar o Maradona infeliz e derrotado pela
cocaína. A frase de Paulo Roberto Falcão, o ex-jogador brasileiro, é exemplo
disto. Maradona no campo foi um deus; na
vida, foi humano.
Para mim, Maradona foi um só e tudo o que lhe aconteceu é
decorrência de seu desmesurado talento desportivo e efeito do endeusamento que
experimentou desde que apareceu pela primeira vez com a bola nos pés.
Garoto pobre de periferia, aos 9 anos já assombrava quem o via
jogar. Numa ascensão meteórica, nos dez anos seguintes, operou milagres para os
times que defendeu, o Argentinos Juniors e o Boca Junior e deu início ao culto
que o entronizou no Olimpo dos torcedores portenhos. Faltava conquistar o
mundo, e isto ele fez, primeiro no Barcelona e depois no Napoli. A inesquecível
campanha de Maradona no time italiano não só fez com que uma equipe antes
medíocre subisse aos píncaros das tabelas europeias como conquistou o coração
de uma cidade inteira. A ponto de os napolitanos torcerem pela Argentina e contra
seu país na Copa de 1986, só porque Maradona estava em campo.
Essa Copa, inclusive, marcou o seu auge. A vitória do time
argentino sobre a Inglaterra, apenas quatro anos depois que os britânicos
haviam humilhado a Argentina na Guerra das Malvinas, ganhou cores mais vivas do
que uma simples partida de futebol. Era uma “vingança”.
E eu fico pensando. Raríssimas pessoas na História experimentaram
essa sensação de mundo a seus pés, de adoração de milhares de vozes, de
bajulação incontida, de declarações apaixonadas, de triunfo e de glória. Como
administrar isto tudo? Como relativizar uma visão de paraíso, de poder
aparentemente ilimitado? Como suportar o fim deste sonho?
Não é outro Maradona,
o que desceu do Valhala. É o mesmo homem que, de pibe nos campos de terra das favelas de Buenos Aires subiu aos
céus. E teve de descer.
Oswaldo Pereira