sábado, 31 de outubro de 2020

R.I.P. 007



Em março de 1961, a deusa da sorte bafejou a fronte de um escritor britânico. Seu nome era Ian Fleming.

Fleming, filho da aristocracia escocesa, tinha um passado importante como oficial de inteligência durante a Segunda Guerra Mundial e, terminada a guerra, seguira uma carreira de altos e baixos como jornalista. Em 1952, entretanto, resolveu exercitar seus dotes de ficcionista, temperados pelos anos de experiência no submundo de espiões que vivenciara e, com poucas chances de sucesso, conseguiu publicar Casino Royale, uma spy novel, gênero desacreditado pelos puristas literários da época.

Mais por prazer próprio, entretanto, Fleming continuou editando suas obras e obtendo um sucesso moderado. Até a data que acima mencionei. Numa reportagem da prestigiada revista LIFE naquele mês de março, seu livro From Russia With Love aparecia como um dos preferidos do Presidente John Kennedy.

A catapulta do sucesso havia sido acionada. Centenas de milhares de leitores ávidos correram às livrarias para adquirirem os thillers de Fleming. Com a Guerra Fria recrudescendo, seus enredos encaixavam-se como uma luva no imaginário de conspirações que dominava corações e mentes.

Logo, o agudo faro de dois produtores de Hollywood detectou alguma coisa em seu radar. Harry Saltzman e Albert Broccoli, ainda no segundo time dos grandes nomes da indústria, resolveram apostar. Com um orçamento modesto, decidiram produzir Dr. No, um dos livros de Fleming.

Caracteristicamente, o escritor impôs participar ativamente, não só na confecção do roteiro, como na escolha do ator para encarnar o personagem principal de suas histórias, um agente secreto britânico chamado James Bond.

Um dos nomes sugeridos foi o do galã inglês Cary Grant. Fleming discordou. Queria alguém menos famoso. Grant era Grant em todos os seus filmes. O escolhido teria de encarnar a persona do espião que criara. Como guia, ele próprio havia feito um esboço do rosto de seu herói. A solução foi instituir um concurso, com candidatos menos emblemáticos.

ESBOÇO FEITO POR FLEMING



Um dos primeiros a aparecer foi um ator escocês de 32 anos. E, bingo, suas feições rudes e seu ar macho encaixavam-se no desenho de Fleming. É ele!  o escritor afirmou.


Thomas Sean Connery, o postulante escolhido, havia feito um pouco de tudo. Marinheiro na Royal Navy, halterofilista, chofer de caminhão, banhista salva-vidas, modelo, jogador de futebol. Recebera até uma proposta do Manchester United. Mas, outros convites haviam-no seduzido.

Trabalhando nos bastidores do King´s Theatre em 1951, Connery acabou fazendo parte do elenco do musical South Pacific. A partir daí o jovem escocês, em grande parte devido a seu porte atlético, foi sendo convidado para vários papéis, tanto no teatro como no cinema. Eram papéis subalternos, como o de um soldado inglês trapalhão em The Longest Day (O Dia Mais Longo), mas que o mantinham no estoque de atores à disposição das agências de talentos.

Falar qualquer coisa a respeito do sucesso de Sean Connery como James Bond é chover no molhado. A História da segunda metade do Século XX nunca estaria completa se não registrasse como um de seus principais ícones a figura de Connery/Bond. Mesmo que a franquia 007 se perpetue, a imagem inicial do agente britânico com licença para matar nunca será esquecida.

Mais importante que tudo é que Sean Connery sobreviveu ao papel. Desistindo primeiramente depois de You Only Live Twice, retornando sob pressão em Diamonds Are Forever, Connery teve a percepção de que sua carreira tinha de ser mais do que isto. E deu início ao seu legado como ator carismático em dezenas de filmes como Marnie, The Man Who Would Be King, The Name of the Rose, Highlander, Robin and Marriam, The Rock e The Untouchables, pelo qual foi premiado com o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, perante uma plateia que o aplaudiu de pé em 1987 no Dorothy Chandler Pavillion.

Paralelamente ao seu grande sucesso nas telas, Sean Connery foi sempre um resoluto defensor de sua terra natal. Propugnando incansavelmente pela independência da Escócia, compareceu vestido com o kilt do clã McLean na cerimônia em que foi agraciado pela rainha Elizabeth II com o título de Sir.

Qualquer um que me conhece sabe que sempre fui um juramentado apreciador dos filmes de Bond. A febre me pegou logo em 1962, quando assisti a Dr. No pela primeira vez num cinema carioca. De lá para cá, li todos os livros de Fleming, colecionei todos os VHS, substitui-os por BlueRays e, com frequência, os revejo com reverência ritual.

Por uma estranha coincidência, havia apenas terminado de rever Goldfinger pela enésima vez quando a notícia da morte de Sean Connery me apanhou. Não tive outra escolha. Preparei com profunda meticulosidade um médium dry vodka martini. Shaken, not stirred, é claro. Levantei a taça em direção ao poente que minguava na minha janela. E disse. R.I.P. 007.

Oswaldo Pereira

Outubro 2020

sábado, 24 de outubro de 2020

PERIGOSO TERRENO DA GALHOFA


APPARICIO TORELLY - O BARÃO DE ITARARÉ


Seu nome era Apparício Fernando Brinkerhoff Torelly. Usou muito o pseudônimo Apporelly, mas era mesmo conhecido como o Barão de Itararé. E foi um dos maiores, senão o maior, jornalista satírico da imprensa brasileira.

Os dotes irreverentes de Apparício evidenciaram-se ainda na adolescência, quando, aluno de um colégio católico no Rio Grande do Sul, sua terra natal, criou um jornaleco chamado “Capim Seco”, em que satirizava a disciplina de seus mestres jesuítas.

Em 1925, largou os estudos de Medicina para dedicar-se inteiramente ao Jornalismo. Nesse mesmo ano, foi contratado por um jornal recém-criado por Irineu Marinho. O Globo. Num apêndice semanal chamado A Manhã, Torelly destilava sua superior verve humorística contra os políticos de então.

O sucesso foi tanto que, em meados da década de 1930, Apporelly despediu-se dos Marinho e criou seu próprio jornal. Tirando apenas o til da publicação que comandava no Globo, lançou aquele que seria, por excelência, o mais lido semanário político de sua época. A Manha.

Como não podia deixar de ser, seus editoriais, recheados de humor cáustico e gozações impiedosas a respeito de autoridades e governantes granjearam-lhe inúmeras e incômodas inimizades e reações violentas. Como opositor de Getúlio Vargas em pleno Estado Novo, foi preso várias vezes e teve sua redação empastelada outras tantas.

Certa vez, por ter escrito um artigo burlesco sobre a Revolta da Chibata, provocou a ira da Marinha e foi espancado por oficiais daquela força. Fiel ao seu estilo, mandou colocar na porta dos escritórios da Manha a seguinte tabuleta: Entre Sem Bater.

Este era, sem dúvida, o grande talento do Barão de Itararé. Brincar com as palavras, construir frases cuja lógica surpreendente mesclava humor com perspicácia. Centenas delas ficaram famosas e são até hoje citadas em homenagem ao grande frasista que era.

Exemplos?

“Os vivos serão governados, cada vez mais, pelos mais vivos”

“De onde menos se espera, é que não vem nada mesmo...”

“Pobre quando come frango, um dos dois está doente...”

“Não é triste mudar de ideias. Triste é não ter ideias para mudar”.

“Viva cada dia como se fosse o último. Um dia você acerta.”

“Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados...”

E por aí vai. Uma das mais famosas expressões de Torelly era a que utilizava para qualificar episódios especialmente escandalosos da vida nacional. Estamos deslizando para o perigoso terreno da galhofa.

E eu fico pensando. Que descrição mais perfeita dos acontecimentos recentes de nosso presente. Um dos mais procurados e perigosos traficantes de droga do planeta saindo pela porta da frente do presídio, beneficiado por um habeas corpus inacreditável de um Juiz do Supremo (Supremo!!!) Tribunal Federal. Um Senador (Senador!!!) da República sendo apanhando com dinheiro ilegal enfiado nos fundilhos.

É, caríssimo Barão. Perigoso terreno da galhofa.  No seu tempo ele já existia. Hoje, o que temos é um caminho escorregadio que, da galhofa, talvez nos faça resvalar para terrenos mais pantanosos, de onde dificilmente se volta...

Oswaldo Pereira

Outubro 2020

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

CORONAVÍRUS - UM CONTO (PARTE II)


 

Há algum tempo, escrevi “Coronavírus – Um Conto” (se quiserem, releiam-no neste LINK). Agora, vai a Parte II.

A última reunião acontecera em dezembro. Agora, outubro de 2020, a magnífica mansão agitava-se novamente. E, claro, com aquela agitação contida e eficiente de uma equipe altamente treinada de excelentes profissionais.

Os sete proprietários haviam chegado na noite anterior, como sempre. O breakfast já fora servido e a reunião iria, também como sempre, ter início às 9 da manhã.

Desta vez, no entanto, quebrando o protocolo, os seis homens entraram primeiro na grande sala. Quando Madame Z surgiu, uma salva de palmas a recebeu. Todos os outros membros do seleto grupo prestavam assim sua homenagem à mentora de um dos mais bem-sucedidos planos de sua recente história.

Assim que todos tomaram seus lugares ao redor da grande mesa, Herr Doktor, o alemão, como de praxe, foi o primeiro a ter uso da palavra.

«Senhores, quero propor um voto de louvor à nossa colega. Uma estratégia impecável! E com resultados muito acima do esperado. Parabéns, cara senhora.»

Realmente, a linha de ação proposta pela chinesa no final do ano anterior ultrapassara em muito as projeções e as expectativas. O aproveitamento de um surto gripal causado por uma variação do vírus SARS, na cidade de Wuhan, para causar uma epidemia global e gerar uma crise sem precedentes no século, desencadeando um pânico em escala planetária, proporcionara aos sete membros oportunidades negociais extraordinárias.

Com o auxílio, involuntário ou não, de governos, autoridades médicas, formadores de opinião e, last but not least, da própria OMS, os impérios financeiros controlados pelos sete haviam auferido ganhos substancialmente maiores do que os percentuais anteriormente estimados.

Zhivago, o russo, cujo comando do mercado mundial de ouro era indisputável, estava radiante.

«O preço do metal está no mais alto nível dos últimos 20 anos. O bastante para que um agradecido Putin passasse a cortejar-me. Grande parte das ações do laboratório que está distribuindo a Sputnik V já está em nossas mãos. Os lucros projetados são astronômicos. Spassiba, Madame Z.»

O brasileiro Rio agitou-se na sua cadeira.

«Eu também tenho de agradecer. A venda de equipamento hospitalar para unidades médicas dirigidas por políticos corruptos foi uma festa! Respiradores, hospitais de campanha, UTI’s móveis, só para falar em alguns itens, foram selvagemente superfaturados. Por outro lado, as nossas redes de supermercados puderam aumentar os preços para uma população acovardada e sem outra alternativa de compra, com a redução das feiras livres. Como se diz em meu país, Beleza Pura!»

O charuto já estava na mão de Mr. Green, o americano. Apenas não o acendera por deferência à sua colega.

«Outstanding! A quebra na Economia americana, ajudada pela própria irresponsabilidade do Trump, colocou em sérias dúvidas a reeleição daquele bastard. Minhas baterias contra ele na mídia vão fazer o resto. Vou eleger o Sleepy Joe Biden. E ele vai ficar me devendo esta. Thanks, Z!»

«Arigato, honorável colega.» O japonês Samurai fez uma elegante curvatura com a cabeça em direção à chinesa e continuou.

«A pandemia arrefeceu a lenga-lenga dos verdes. O foco mudou. Embora o consumo mundial de energia tenha diminuído, isto acabou por nos ajudar. Estamos adquirindo por preços irrisórios grande parte da indústria de energia limpa. Com o seu comando nas nossas mãos, os projetos vão andar a passo de cágado.»

Herr Doktor esperou o japonês terminar de falar limpando cuidadosamente as lentes de seus óculos. Seu sorriso era inusitadamente amplo quando falou.

«O pânico do COVID está causando uma movimentação histórica no mundo dos fármacos. Os lucros dos nossos laboratórios são exponenciais. E isto antes de começarmos a empurrar pela goela abaixo da humanidade inteira as vacinas. Bilhões delas! Wunderbar!»

Mesmo na área do Sheik, em que a OPEP, sob sua direta influência, experimentara uma sensível diminuição no consumo global de combustíveis, principalmente pela redução das atividades das gigantes aéreas, ganhos potenciais estavam previstos. Debaixo de seu turbante, os olhos de águia franziam de satisfação.

«Aproveitamos para adquirir vultosas posições acionárias de montadoras, companhias de aviação e da indústria de cruzeiros marítimos. Tudo a preços irrisórios. E já se percebe um crescimento nessas áreas. Numa possível retomada, vamos lucrar imensamente, Alá seja louvado!»

Foi a vez de Madame Z falar.

«Xié xié, muito obrigado, honoráveis colegas. E acho que iremos comemorar ainda por muito tempo. O mundo está refém do pânico. O volume de informações contraditórias mantém a balança do terror em todo o planeta. Governos medrosos ou mal-intencionados e até corruptos fazem o resto. Um quadro sem previsão de mudança, no curto prazo. A simples menção a uma suposta segunda onda já colocou a Europa de rastros. As estimativas de nossos ganhos são agora incalculáveis.»

Nova rodada de aplausos encerrou a reunião.



Oswaldo Pereira

Outubro 2020

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

SABEDORIA


Você é o resultado das suas opções.

Passei a minha vida inteira pensando nesta frase. Vista por qualquer ângulo, sempre me pareceu verdadeira, quase um dogma, uma explicação simples, mas insofismável do mistério da existência, de nossa sorte ou nosso infortúnio, do sucesso ou do fracasso, da virtude ou do pecado, do amor ou da solidão.

No limiar dos meus oitenta anos, entretanto, esta imagem começa a se confundir com outra. Chegar à velhice provecta tem isso. Ganhamos perspectiva. Com muitos mais dias vividos do que a viver, temos mais passado do que porvir, mais lembranças do que indagações.

Vista daqui de cima, do alto de um caminho percorrido, a paisagem parece alinhar seus contornos, dúvidas e incertezas oxidam-se e derretem-se no ar rarefeito da idade avançada, quedas e retomadas fundem-se numa só coisa, numa opção única, férrea, constante. A visão deste lado dos oitenta relativiza tudo, de uma certa maneira despreza os erros, mitiga a lembrança dos anseios e das angústias, mas também abranda o orgulho das conquistas, a insolência das vitórias.

O que fica é a calma, um poente dourado que vibra seu brilho sobre as curvas da memória, uma canção aqui e ali, um desejo atendido ou negado, verões de luz intensa, noites de inverno, fichas jogadas na roleta das decisões, acertos, desacertos, desvios e retornos. Pedacinhos de um mosaico, que construíram a imagem do meu rosto de agora e que contam a minha história.

El Diablo sabe por Diablo, pero sabe mucho más por viejo.

Ouvi este ditado ainda criança.  Estarei mais sábio? Não sei. Mais sabido, certamente.  Pelo menos isso. E que essa sabedoria tenha sido o resultado das minhas opções.

Oswaldo Pereira

Outubro 2020