quarta-feira, 30 de setembro de 2020

PAPO DE BAR - VACINAS


 «Antonia?! Ué, aqui no ZanziBar? E a quarentena?»

«Bem, achei que com cuidados, máscara, distanciamento das mesas, álcool gel na entrada, mesas higienizadas, dava para arriscar. Afinal, ninguém é de ferro.»

«Beleza! Assim a vida vai voltando ao normal. O homem não foi feito para viver entocado. Parodiando Fernando Pessoa, conviver é preciso. Está na hora de abrir as janelas, retomar o mundo em nossas mãos. Gozar novamente a vida.»

«Menos, Cézar, menos. Não está na hora de, mesmo inspirado por Pessoa, sair por aí à grande e à francesa, como se diz na terra dele. O bichinho continua fazendo estragos. Viu o que aconteceu na Espanha, na Inglaterra? Deram mole, e a infecção está voltando. Não tem lido as notícias?»

«Leio e não leio. Muita paranoia. OMS, imprensa, doutores de cenho carregado apregoando o apocalipse. Agora, com o inverno às portas do hemisfério norte, a profecia sinistra da segunda onda. Prefiro ligar a TV a cabo e assistir a um bom filme...»

«Típico de você. Cinismo e ceticismo podem ser chiques numa mesa de bar. Para mim, o perigo está aí. Ainda não soou o all clear. Só mesmo com a vacina.»

«E você vai tomar?»

«Se puder, vou ser uma das primeiras. Quero ficar logo protegida.»

«Você agora me deixou confuso. Tem um medo que se pela do vírus, mas se dispõe a tomar a vacina logo de caras?»

«É claro que sim!»

«E, se me permite perguntar, qual delas? A chinesa, a inglesa, a americana, a alemã, a canadense...»

«Qualquer uma. A primeira que ficar disponível. Por que? Você vai esperar para escolher?»

«Escolher? Deus me livre. Não vou tomar nenhuma delas.»

«Por que você tem de ser o mesmo inconsequente de sempre? Vacinas têm sido a grande defesa contra doenças, epidemias e...»

«Desculpe, querida, mas já vi que você se deixou levar pelo noticiário. Me deixa explicar o seguinte. Vacinas não são remedinhos para curar dor de cabeça ou prisão de ventre. São coisa muito séria e necessitam anos de pesquisa e testes para comprovar sua eficácia e, principalmente, a ausência de efeitos colaterais gravíssimos. É preciso entender que a vacina, na realidade, consiste em inocular em você o próprio vírus que pretende combater, acompanhado de agentes que provoquem em seu corpo a reação dos anticorpos que irão eliminá-lo e que passarão a fazer parte do seu sistema imunológico. Para que isso aconteça com segurança, são precisos anos de pesquisa para chegar às combinações ideais das dosagens. E, a partir daí, visto que cada ser humano é diferente do próximo, anos e anos de testes até chegar a um produto que possa ser usado por toda a gente sem problemas. Normalmente, uma vacina, como a antipólio, a BCG, contra a tuberculose e as demais, contra endemias como sarampo e varíola, por exemplo, levaram no mínimo mais de oito anos para serem aprovadas.»

«OK. Muito bem. Mas o COVID está aí matando centenas de milhares. Não temos como esperar. Quer você acredite ou não, há quase uma certeza de que vai haver mesmo uma segunda onda. Ou até uma terceira. E porque não imaginar que os laboratórios, desta vez, conseguirão encurtar com segurança os prazos?»

«Ora, Antonia, os laboratórios estão de olho nos zilhões de dólares que irão faturar. Serão bilhões de doses, enfiadas boca abaixo, ou braço adentro, da população mundial. Eu fora.»

«E se for obrigatória? E se você só puder circular, viajar, afinal, conviver, se tiver o papelzinho, atestando que você se vacinou, no bolso?»

«Me rebelo. Grito e esperneio. Me nego.»

«Tipo Revolta da Vacina? Foi em 1908. Isto é que é um retrocesso...»

«Andar com um salvo conduto no bolso me lembra da Alemanha Nazista. Outro retrocesso...»

«Então, se correr o bicho pega.»

«E, se ficar, o bicho come. Por falar nisso, o que vamos pedir para comer?»

 

Oswaldo Pereira

Setembro 2020

terça-feira, 22 de setembro de 2020

2020 A LA CAMÕES



Abril trouxe mil e uma flores
Matizes de vermelho, azul e rosa
Tingindo, em miríades de cores
Jardins, canteiros e, esplendorosa,
A própria Natureza, e o céu de amores.
Mas, presos num cruel confinamento
Perdemos para sempre esse momento
 
Em maio, o mar em branca espuma
Beijou, amoroso, a enseada
E todas as nereidas, uma a uma,
Dançaram nuas na praia enluarada
E Netuno, surgindo em plena bruma
Semeou de conchas a preamar dourada
Mas tolhidos pela infame pandemia
Nem sentimos o odor da maresia
 
Junho sempre foi o mês da festa
Dos balões e dos rojões, do solstício
Das fogueiras de Beltane, da seresta
Do céu sempre estrelado, do bulício
De crianças, cujo sorriso empresta
Mais beleza ao festival propício
Mas, fechados, tremendo, em nossos lares
Nada vimos dos Santos Populares
 
Oh! Julho, que sempre fostes belo
O auge do calor ou da invernada
(Dependendo, claro está, do paralelo
Em que se pode achar nossa morada)
Ao norte, deste o sol como um martelo
Ao sul, a cor cinzenta da geada
Mas, fosses tu fulgor ou vela
Só te vimos passar pela janela
 
Depois de tudo isto veio agosto
Tentando desmentir a triste fama
De ser o vil arauto do desgosto
Provou ser mais gentil que uma dama
Muniu-se de um sorriso em seu rosto
E fez-nos ver da esperança a chama
Mas, prenhes de notícias deprimentes
Apagamos a chama em nossas mentes
 
Agora vem setembro, e o tempo passa
Seis meses de prisão, rosto coberto
Pela máscara do medo, feia e baça
E do futuro sem saber, ao certo,
Quando enfim termina esta desgraça
E se um dia viverei a céu aberto
Sem medos, cuidados, quarentenas
Um homem sem temores. Livre, apenas.
 
Oswaldo Pereira
Setembro 2020

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

NO REFUNDS


Alguns anos acabam se perpetuando na memória das gentes. Para nós, brasileiros, tem o 1500, ano em que Cabral chegou por aqui. O 1822, ano do Grito do Ipiranga; 1889, o da República; 1930, o da Revolução; 1964, o da outra, a Redentora.
  Portugal, por exemplo, tem os cravos de 1974.

Há outros cuja marca é mais ampla, global, e o mundo inteiro guarda suas lembranças nos números apontados pelo calendário. Só para anotar os mais recentes, temos os icônicos 1912 (Titanic para o fundo do mar e o fim de uma era), 1914 (os impérios europeus partindo para a carnificina e marchando para o seu desaparecimento), 1939 (ditadores precipitando o planeta num abismo apocalíptico), 1945 (o cogumelo nuclear causando arrepios de fim do mundo), 1963 (o sorriso de Kennedy abatido em Dallas), 1969 (“um pequeno passo para um homem, um grande salto para a Humanidade”...)

O nosso século não esperou muito para cravar um logo no início. 2001, não o da Odisseia no Espaço, mas o das torres desmoronando em Nova Iorque.

E, agora, isto. 2020. Qualquer blogueiro, mesmo um com a mesma mediocridade deste que vos escreve, e que se predisponha a publicar em 2120 um texto sobre este ralo tema, terá de selecionar o ano em que estamos como um dos marcos históricos do século XXI. Mesmo que outras hecatombes, epifanias, descobertas ou conquistas venham a ocorrer dentro destes cem anos, nada irá apagar a importância de 2020.

O ano da meia-trava. O impensável ano da máscara, do confinamento, do álcool-gel, do lockdown, dos toques de cotovelo. O ano em que a Terra parou. Sonhos e Olimpíadas. Tudo remetido para o futuro.

Mas o Tempo, este não quer nem saber. Está por aí, e, de repente, nem mais está, seus tornozelos alados fugindo na nossa frente. Dele não esperemos reembolsos pelo ano perdido. Mesmo que tentemos convencê-lo de que não tivemos culpa, de que foi coisa dos chineses, não haverá refunds. 2020 vai passar. E, com ele, um precioso e desaproveitado pedaço das nossas vidas.

Oswaldo Pereira

Setembro 2020

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

ONU & PANDEMIA


A ideia foi do Presidente americano Franklin Roosevelt. O mundo ainda estava imerso na carnificina da Segunda Guerra Mundial quando, em 1942, Roosevelt imaginou uma organização internacional a ser criada quando o mundo ganhasse juízo e os canhões emudecessem, e que se dedicasse a preservar a Paz e a Segurança do planeta.

A ideia nada tinha de original. Após o término da Grande Guerra de 1914-1918, os países beligerantes haviam estabelecido um órgão semelhante, a que haviam dado o nome de Liga das Nações. Durou pouco. Cessa tudo o que a antiga musa canta, que um poder mais alto se levanta, já dizia Camões. A Itália de Mussolini, a Alemanha de Hitler e um Japão militarizado fizeram tabua rasa dos bons princípios da Liga e partiram para avançar suas fronteiras sobre países mais fracos. Sem força e sem voz, a organização murchou e o novo apocalipse eclodiu em setembro de 1939.

Mas, em 1945, com o cogumelo atômico sedimentando a noção de que, agora, uma guerra de proporções planetárias poderia eliminar a raça humana, a visão de Roosevelt apresentava-se como uma necessidade imperiosa e urgente. E em outubro daquele ano, 50 países assinaram o compromisso de criar um órgão que pudesse prevenir a hecatombe e fazer preservar a Paz. Nascia a Organização das Nações Unidas.

De lá para cá, a ONU vem escrevendo sua história com altos e baixos. Dizer que ela cumpriu sua missão básica, isto é, impediu o advento de uma Guerra Mundial III, é verdadeiro apenas em parte. O balanço dos arsenais nucleares e o medo de apertar o botão vermelho fizeram mais por isso.

Mas, inegavelmente, sua intermediação em alguns conflitos e, principalmente, sua ação humanitária no combate à fome e à opressão justificam com sobras a sua existência. Suas agências, como a UNICEF, a FAO, e a UNESCO são exemplo disto. Foi assim em vários pontos da África, no Haiti. Por outro lado, a ONU foi incapaz de mediar e apaziguar as guerras do Oriente Médio, no Vietnam, no Afeganistão, no Iraque e na Síria, só para citar alguns bárbaros conflitos.

Tudo isto para dizer o seguinte. Desde a sua criação, é a primeira vez que a organização experimenta uma situação de pandemia. Um ataque viral de proporções globais e que vem provocando uma reviravolta profunda de hábitos, atitudes e comportamentos, inédita desde a metade do século passado, além de um estremecimento econômico grave.

Era hora da ONU mostrar o seu valor. E o que tivemos? Uma atuação insegura, para não dizer pífia e titubeante da sua agência dedicada ao assunto. A OMS vem protagonizando um filme B de marchas e contramarchas, orientações desastrosas, dizeres e desdizeres, recomendações diametralmente opostas. Desde março, quando o nosso inefável Tedros Ghebreyesus deu início à sua cantilena de declarações de curta validade, que a imagem de detentora do saber científico de sua agência na área da saúde começou a desmoronar.

Além disso, outra coisa me intriga. Onde está o Secretário-Geral da ONU? Como é possível que, nos quase oito meses de duração da maior crise sanitária internacional dos tempos atuais, António Guterres não tenha praticamente dado o ar de sua graça?

Oswaldo Pereira

Setembro 2020