Ah! os chineses...
Talvez o grande efeito
colateral da pandemia seja a avalanche de teorias sobre a origem, o alcance e o
objetivo (se há algum) do COVID-19 e sua propagação planetária. No centro das
atenções está a China. Para mim, não se trata
propriamente de uma surpresa.
Em fevereiro de 2013,
quando criei este blog, um dos meus primeiros textos foi este:
“Em
1994, participei, na sede brasileira do Citibank em São Paulo, de um encontro
com o Sr. John Reed, à época Presidente do Citicorp e um dos executivos mais
influentes do planeta. Éramos uns vinte convidados, cada um representando seu
setor, num quadro amplo que reunia praticamente todos os principais componentes
das áreas industrial, comercial e financeira do país. A ideia era dar ao
administrador do megabanco multinacional uma visão o mais completa possível da
situação político-econômica do Brasil.
John
Reed era um tipo naturalmente simpático, com uma cara de garoto que camuflava o
fato de ter mais de cinquenta anos. Falava algum português, um bom espanhol,
pois passara boa parte de sua idade escolar aqui e na Argentina, e, naquela
tarde, desempenhou seu papel de anfitrião com maestria, demonstrando um
conhecimento aprofundado do que se passava por estas bandas.
Após
cada um de nós ter discorrido sobre as atividades de sua área, ele resolveu
falar um pouco sobre sua rotina de trabalho, que lhe impunha viajar ao exterior
durante quatro meses em cada doze, para visitar os países onde o Citibank
estava presente, o que era o mesmo que dizer - o mundo.
E
disse-nos ele, que, no ano anterior, fora pela primeira vez à China, onde
Citibank acabara de instalar a primeira agência. Dada a importância do evento,
considerado pela opinião internacional como um sintoma de que o país se
desgrudava da cartilha ortodoxa do comunismo, convidaram-no para uma entrevista
com o então primeiro-ministro chinês, Deng Xiaoping. Foi nessa reunião, logo
após serem cumpridas as formalidades iniciais, que Xiaoping surpreendeu Reed com
a seguinte pergunta:
“Mr.
Reed, o senhor já deve ter percebido que a China marcha para o Capitalismo.
Como um dos maiores representantes do Capitalismo mundial, o que o senhor tem
para aconselhar-me?”
Totalmente
off guard, Reed falou a primeira coisa que lhe veio à cabeça:
“Senhor
Primeiro-Ministro, não deixe que o automóvel tome conta da China.”
Vendo
a nossa divertida estranheza com a resposta dada (não tão divertida da parte do
representante das montadoras), ele esclareceu:
“Eu
só ficava imaginado o tamanho da sucata de pneus se os chineses resolvessem
adotar o lema de Henry Ford na década de 1920 – cada americano, um carro”.
Desde
esse dia, eu passei a perceber que toda atividade comportamental ganha nova
dimensão quando a aplicamos à China. E que tudo o que pensamos para o futuro da
Terra não será verdadeiro se não incluirmos o fator chinês na equação.
Todo
mundo conhece aquela historinha, presente em quase todos os almanaques “Você
sabia?...” de anos atrás, informando que, se todos os chineses subissem num
banco de um metro de altura e pulassem para o chão ao mesmo tempo, o impacto
faria a Terra deslocar-se de seu eixo. Embora impraticável, dá para pensar.
A
China deve ultrapassar brevemente a marca de 1,4 bilhão de habitantes. Quer
brincar um pouco com os números? Se apenas 10% da população resolvesse tomar
uma garrafa de vinho por semana, a demanda representaria 30% da produção
semanal da bebida em todo o mundo. Se decidissem fumar um charuto, não haveria
suficiente para todos, mesmo se a fabricação mundial lhes fosse dirigida
exclusivamente. É claro que estes sofisticados hábitos estão ainda muito além
do dia a dia do cidadão comum, e talvez nem um décimo dos chineses os adquirirá
num próximo tempo. Mas, e se?...
Desde
1978, o país cresceu 90 vezes em termos econômicos. Entre 1981 e 2001, a taxa
de pobreza da China caiu de 56% para 8%. Hoje, há 800 milhões de telefones
celulares e 120 milhões de internautas. Mais de 10 mil PhD´s graduaram-se em
2009 e, no mesmo ano, 121 mil trabalhos científicos foram publicados. Os
conservatórios de música formaram, no ano passado, 30 mil alunos em nível de
concertista; é provável, portanto, que cada vez mais estaremos aplaudindo
pianistas, violinistas e maestros chineses, assim como já hoje verificamos
divertidos que desde monitores até meias de lã estamos sempre comprando algo
“made in China”.
Por
fim, em 2011 foram vendidos naquele país 40 milhões de carros. E,
premonitoriamente, nos seus 65 mil quilômetros de estradas morreram 62.000
pessoas. Acho que nem Reed, preocupado com as sucatas de pneu, poderia prever
isto. E estamos só começando...”
Cinco anos depois, em
julho de 2018, fiz este comentário num texto que publiquei sobre relações
internacionais:
“Há
pouco mais de um ano, os chineses consolidaram um poder incomensurável nas mãos
do presidente Xi Jinping. Isto quer dizer que o país tem uma liderança forte,
que poderá conduzi-lo a assumir seu papel como a maior potência do planeta até
meados deste século.”
É obvio, para quem
acompanha com certo interesse a cena mundial e conhece um pouco da trajetória
do atual presidente chinês, que Xi Jinping tem uma agenda. Não vou chegar ao
ponto de insinuar nada muito sinistro. Isto vou deixar para a imaginação de
John LeCarré, Daniel Silva, Ken Follett e demais mestres da spy novel e doutores em esquemas
mirabolantes de dominação do mundo. Imaginem se Ian Fleming estivesse ainda
entre nós... (Por falar nisso, Dr. No, o
primeiro grande inimigo de 007, era metade chinês...)
O plano de Jinping é
resgatar a imagem da China como protagonista da cena global. Com um feixe de
poder nas mãos comparável ao de um Imperador da dinastia Ming, ele está
posicionando o seu país para isto. O homem certo no lugar certo. E no tempo
certo.
Desde o século XVIII,
com o desaparecimento da China Imperial, a região virou um mercado aberto à
exploração desenfreada e inescrupulosa dos poderes ocidentais. Aproveitando a
corrupção pandêmica dos autarcas locais, instaurou-se o saque. Foi a época do negócio da China, do enriquecimento
ilícito de piratas e espertalhões de toda a parte, à custa do empobrecimento de
sua população.
Depois de sugarem o que
puderam, os barões imperialistas se retiraram. Então, vieram os japoneses. A
crônica da ocupação japonesa é uma história horripilante. Dispostos a
transformar a China numa colônia subserviente, estupraram sua terra e seu povo.
Terminada a guerra, o
país arrasado estava pronto para um messias. E ele apareceu. Mao Zedong chegou,
viu, doutrinou e venceu. Mas o sonho do grande império escapou. A Revolução
Cultural afundou-o novamente nas trevas.
O salvador pragmático
acabou surgindo na figura improvável de Deng Xiaoping. Com os olhos postos no
futuro, Xiaoping percebeu que o caminho estava na transformação da China num
grande parque industrial de mão-de-obra barata e na criação de uma elite de
empresários sequiosos de invadir o mercado mundial com seus produtos. Made in China passou a ser a griffe do planeta.
Xi Jinping é o herdeiro
deste novo vento. Indisputável líder político e administrativo de um país em
plena pujança, ele pretende apagar a frase negócio
da China e substituí-la por O Negócio
É a China...
Oswaldo Pereira
Abril 2020