sexta-feira, 21 de junho de 2019

O TIRO QUE SAIU PELA CULATRA


Sempre que possível, prefiro ver os fatos em primeira mão. Sabê-los por segundas vias nos impõe o risco de encontrá-los eivados de interpretações e adições daqueles que os repassam. É o velho quem conta um conto aumenta um ponto.

Por isso mesmo, resolvi assistir ao vivo a atuação do Ministro da Justiça Sérgio Moro na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Apresentando-se de espontânea vontade, Moro suportou as quase 10 horas da sabatina a que 43 senadores (mais da metade do Senado) o submeteram sobre o assunto que ocupou todas as atenções políticas na última semana: a invasão dos celulares dos procuradores da Operação Lava-Jato, através do aplicativo Telegram, pelo site de hackers profissionais chamado The Intercept. Este site tem como administrador o americano Glen Greewald, que foi parceiro de Edward Snowden no Wikileaks.

Esta violação teria revelado conversas entre Moro, então juiz encarregado da Lava-Jato, e alguns procuradores, nas quais ele fornecia sugestões de ação e instruções investigativas nos processos da Operação, principalmente nos relacionados com a acusação a Lula da Silva.

Imediatamente, os partidários do ex-Presidente irromperam num frenesi de declarações, qualificando as conversas como um conluio criminoso entre juiz e agentes do processo e, indo mais além, exigindo a demissão de Sérgio Moro, a anulação de todas as fases processuais e, sonho de consumo da Esquerda brasileira, a libertação de Lula.

Numa atitude não muito comum, Sérgio Moro ofereceu-se a ir ao Senado explicar-se. E de sua prestação, nesta cansativa maratona de perguntas e respostas, pude constatar várias coisas bastante esclarecedoras.

A primeira foi a distinta superioridade intelectual, protocolar, republicana e objetiva de Moro sobre a grande maioria dos membros do colegiado que o arguia. Alguns senadores foram grosseiramente agressivos, outros até caricatos na sua falta de qualquer vislumbre de argumentação racional.

Depois, a sua firmeza e serenidade na recolocação do assunto nos seus devidos termos. A saber:

- as supostas gravações das aludidas conversas foram obtidas por hackeamento de telefones particulares de juízes e procuradores, o que, em qualquer país do mundo, é crime. Só esta circunstância já seria suficiente para as invalidar, porque obtidas ilegalmente, como prova;

- mesmo se admitidas, teriam elas de passar por um crivo de verificação que confirmasse sua autenticidade. Até onde se sabe, não há qualquer arquivo em audio, e sim transcritos das conversas, o que suscita a dúvida se o que lá está escrito corresponde à verdade.

Apesar disto, Moro, repetidamente, declarou que, mesmo que essas gravações fossem autênticas, não há nada em seu teor que configure qualquer ilicitude, pois o direito processual brasileiro permite que, durante a fase de instrução, juiz, procuradores e advogados de defesa troquem informações e sugestões sobre o processo.

No seu açodamento, no bojo de uma tempestade fabricada em copo d’água, a Esquerda pretendeu derrubar Moro com um tiro de festim. Que saiu pela culatra. O Ministro da Justiça, nesta reunião no Senado, saiu maior do que entrou. E vozes começaram a ser ouvidas de uma possível candidatura Moro para 2022...

Um último adendo.

Não tenho nada contra ideologias. Como formado em Direito e do signo de Libra, sou um ferrenho defensor da liberdade de opinião e de escolha. Aceito, e até tenho vários grandes amigos que assim o fazem, quem professa e crê no ideário social-comunista, embora pessoalmente tenha eu uma convicção diferente. Mas, não posso deixar de me colocar contra a postura que alguma Esquerda brasileira, principalmente na imprensa e da intelectualidade, vem adotando na veiculação de sua ira e sua histeria no exterior. Como estou em Portugal, tenho presenciado episódios em que informações mal-intencionadas e fantasiosas são deliberadamente divulgadas, mostrando uma imagem distorcida, tendenciosa e até grosseiramente falsa do nosso país. Exemplos?

No conceituado jornal O Expresso da semana passada, o não menos conceituado colunista e escritor Miguel Sousa Tavares vociferou contra Sérgio Moro por conta das denúncias acima comentadas, publicando que Moro “jaz soterrado sob um mar de lama que nenhum Lava-Jato poderá limpar.”  Fico imaginando em que fonte Sousa Tavares terá ido beber para escrever uma insanidade destas.

Outro dia, um sobrinho meu veio informar-me ter ouvido de alguém que, no Brasil, a Polícia Federal estava proibindo a emissão de passaportes para impedir a fuga de brasileiros para o exterior. Coisa de loucos...

Acho que a Esquerda brasileira precisa se reinventar. Se continuar neste processo de exercer oposição apenas como vingança e como defesa cega de um governo enleado em propinodutos, vai afastar-se cada vez mais da realidade, correndo o risco de se ver identificada com o crime e a corrupção.

Oswaldo Pereira
Junho 2019

terça-feira, 18 de junho de 2019

MEDO




“Real power is – I don’t even want to use the word – fear” (O verdadeiro poder é – eu até não quero usar a palavra – medo).

Esta frase foi dita por Donald Trump a Bob Woodward numa entrevista em março de 2016. E é a abertura do último livro deste, Fear, lançado no ano passado. Acabei de lê-lo, e posso confessar que fiquei com medo. Não no sentido que Trump quis dar, mas pelo que o relato de Woodward inspira, ou transpira, sobre a personalidade errática, imatura e instável do Presidente dos Estados Unidos.

Woodward é um dos mais premiados e respeitados jornalistas americanos. Sua fama começou há 48 anos quando, ainda um jovem repórter do prestigiado Washington Post, publicou, juntamente com seu colega Carl Bernstein, as reportagens que iriam desaguar no histórico escândalo do Watergate e na eventual renúncia de Richard Nixon. Seu livro sobre o acontecimento, All The President’s Men (Todos Os Homens do Presidente), transformou-se num dos maiores sucessos editoriais do mundo inteiro e acabou sendo levado para as telas. De lá para cá, Bob Woodward já publicou 19 livros sobre a cena política americana e extensas avaliações das administrações de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama. Credenciais não lhe faltam.

O Donald Trump que emerge das suas páginas é um indivíduo quase paranoicamente egocêntrico, avesso a conselhos e opiniões alheias, desrespeitoso com assessores e perigosamente impulsivo nas decisões que toma. Como a maioria dessas decisões carregam em si o peso de mexer com a ordem mundial, avalie-se o risco. Contra a recomendação da quase totalidade de seus secretários e conselheiros civis e militares, gente da melhor competência que foi cruelmente destratada por ele, Trump tem rasgado acordos, insultado aliados, quebrado protocolos da liturgia do cargo, abusando do impromptu em seus contatos com a grande imprensa (a quem acusa de persegui-lo) e nas explosões às vezes infantis que despeja nos seus twitters.

No primeiro capítulo de Fear, Woodward relata a fixação de Trump na extinção do KORUS, o acordo entre os Estados Unidos e a Coreia do Sul, firmado há mais de 50 anos. O dinheiro gasto na manutenção de 28.000 soldados americanos na península e um generoso favorecimento comercial aos coreanos eram as razões do Presidente. Muito embora sua assessoria em mercado internacional e os chefes militares tivessem contra argumentado que o preço era pequeno dado o acesso que, pelo acordo, os americanos tinham à inteligência sul-coreana e à possibilidade de detectar o lançamento de mísseis da Coreia do Norte em apenas 3 segundos (versus 15 minutos na base de Portland, no Alasca), Trump bateu o pé. Mandou preparar a carta de revogação do KORUS. Que só não foi assinada porque seu secretário particular retirou-a da pilha de papéis da escrivaninha do Salão Oval, valendo-se de outra característica da personalidade do Presidente. Trump tende a esquecer rapidamente das suas instruções, não tem agenda e nem sentido de follow-up. O KORUS continua em força até hoje.

O livro termina em meados de 2018. Desde então, temos presenciado a guerra comercial com a China, a briga com a NATO, as idas e vindas dos encontros com Kim Jong-un, as ameaças ao México, a denúncia do acordo nuclear com o Irã, a marcha do inquérito sobre a influência dos hackers russos no processo eleitoral. Rajadas de vento que perturbam as águas da estabilidade global.

No ano que vem, novas eleições presidenciais. Paralelamente a tudo o que Woodward nos mostrou, os Estados Unidos estão crescendo a níveis mais altos do que nos anos anteriores e o desemprego caiu significativamente. Será o suficiente para que o eleitor americano queira repetir a dose?

Oswaldo Pereira
Junho 2019

domingo, 9 de junho de 2019

DESTINOS CERTOS: ESCÓCIA




O sol pouco aparece. E, quando o faz, nos acena de longe. O vento, este está sempre presente, o bastante para revoltar os cabelos e entortar guarda-chuvas mais baratos. E a chuva. No decorrer de uma típica hora primaveril escocesa, os três se vão revezar sucessivamente. Preparados para tudo, é assim que devemos andar pelas charmosas ruas de Edimburgo. A melhor previsão dos humores do tempo termina sempre com a palavra “mixed”. Ou seja, um pouco de tudo.

Mas, esta é a proposta. A capital e o país ficam melhor assim, emoldurados pelas nuvens eternas, molhados pela garoa fina que produz campos de um verde infinito, afagados pela ventania que serpenteia nas passagens estreitas e pelas praças. Assim é a Escócia, uma terra de tradições arraigadas em seus magníficos vales, de gente empedernida e forte como os rochedos de sua costa nortenha, de rebanhos em pastagens de infinita verdura, de uma história povoada de heróis e lendas.

E a história está em todo lugar por onde se ande.

Ocupada pelos romanos no século I, a região entrou na Idade Média povoada pelos celtas, cuja cultura predominou sobre a influência de algumas tribos menores e as sucessivas invasões viquingues. Mas foi a permanente turbulência de seus conflitos com os anglo-saxões ao sul que desenhou a principal característica de sua crônica medieval. Foram várias batalhas, vários confrontos, que eternizaram os nomes de William Wallace, de Robert the Bruce, de Rob Roy. A sua própria independência viu-se, às vezes, posta em causa pela rivalidade dos clãs. E pela disputa enraivecida entre Elizabeth I e Mary Stuart. Finalmente, no início do século XVIII, a Escócia uniu-se à Inglaterra na criação do Reino Unido. E lá está até hoje.

Edimburgo
CASTELO DE EDIMBURGO

Com cerca de 550 mil habitantes e uma área histórica concentrada, Edimbra, como a chamam os da terra, é uma cidade ideal para se andar a pé.  Da Princess Street, onde está o melhor da zona comercial, até a extensa rua chamada Royal Mile, é um pulo. E dali é só subir em direção ao Castelo. Construído em cima de um vulcão extinto chamado Castle Rock (e aí, galera do Game of Thrones, já viram onde George Martin foi buscar inspiração?), é o ícone turístico da cidade. Vale o passeio, a vista e a história encrustada nas pedras negras dos muros e das ameias. Dentro, estão dois museus militares e um memorial, testemunhas do envolvimento escocês nas batalhas travadas pelo Reino Unido. Só nas duas guerras mundiais, foram mortos mais de 180.000 filhos da terra.

Perto fica a impressionante Catedral de Saint Giles. Um pouco mais para leste, o Palácio de Holyrood, onde Mary Stuart viveu o período mais determinante de sua vida. Lá, ela tentou ser rainha. Não conseguiu. E, como ninguém é de ferro, depois de encharcados de história e salpicados pela chuva, nada melhor do que um acolhedor pub e um copo do supremo tesouro nacional. O whisky.

Esta mistura de cevada, água e fermento, processada por destilação, apareceu na Escócia lá pelo final do século XV. Seu primeiro registro é uma encomenda feita a um frei chamado John Cor para fabricar 500 garrafas de uisge beatha, o nome celta para água da vida. De início, só os mosteiros tinham autorização de produzir a bebida para uso medicinal. Entretanto, como o remédio era bom demais, logo um mercado mais imaginativo foi surgindo e os saxões, que não conseguiam falar corretamente uisge beatha (pronuncia-se uishguebau), o simplificaram para seu atual nome. Hoje, existem mais de 90 grandes destilarias na Escócia.  E um mercado planetário.

Highlands
A população da Escócia é de 5,4 milhões de habitantes, fortemente concentrada na parte central do país, no eixo Edimburgo/Glasgow. Isto faz com que nas outras regiões existam grandes espaços verdes. Viaja-se por largo tempo sem se ver uma povoação. Só pastagens. E ovelhas, carneiros e vacas.

Nas Highlands, as Terras Altas, que compõem a parte setentrional do país, não é diferente. Aí também estão os glens, os acentuados vales, desenhados entre picos sempre enevoados, que nos trazem os contos de clãs em eternas disputas territoriais, suas lendas medievais, seus castelos misteriosos, seu vento cortante. Também aí estão os lochs, os lagos de água impenetrável. É quase obrigatório um passeio de barco no Loch Ness e curtir a esperança de ver o mítico monstro emergir da superfície escura.

LOCH NESS

 Scottish Borders
É a região fronteiriça. Com a Inglaterra, claro. E, por isso mesmo, o cenário dos grandes conflitos dos escoceses com seus incômodos vizinhos. Como não há qualquer grande obstáculo natural entre os dois países, os embates eram frequentes, determinados pelo incessante desejo dos saxões em dominar o norte da ilha. No final do século XIII e no início do seguinte, este desejo era personificado pelo rei inglês Eduardo I. Mas, seus sonhos foram contrariados por dois legítimos heróis. William Wallace e Robert the Bruce. Nas batalhas de Sterling Bridge e Banockburn, os escoceses levaram a melhor e reafirmaram sua independência. Os sítios históricos estão abertos à visitação.

Se quisermos visitas mais amenas, há dois edifícios religiosos merecedores de uma vagarosa descoberta. Um, é a Capela de Rosslyn. Fundada em 1446 por Sir William St. Claire e dotada de um minucioso trabalho em pedra em seu interior, cheio de figuras intrigantes e de simbolismo quase esotérico, a capela ficou ainda mais famosa depois que o escritor Dan Brown a incluiu na parte final de seu livro “O Código Da Vinci”.
 
ROSSLYN CHAPEL
Outro, é a Abadia de Melrose, construída no início do século XII pelos monges cistercienses e onde foram enterrados vários reis escoceses. Afirmam que uma caixa contendo o coração de Robert the Bruce está lá. Em algum lugar.

Esta é a Escócia que vi. Um destino certo.

Oswaldo Pereira
Junho 2019