Rússia.
23 fevereiro de 1917, pelo calendário juliano. Pelo calendário gregoriano, em
uso no resto do mundo ocidental, é o dia 8 de março. Dia Internacional da
Mulher. No dia anterior, a Putilov, o maior complexo industrial de Petrograd,
entrara em greve.
Logo
cedo, as mulheres começam a aparecer nas portas das outras fábricas
arrebanhando seus maridos. A paralisação do trabalho vai aumentando. Antes do
meio-dia, mais de 50.000 operários marcham pela cidade. Seus gritos e seus
anseios estão amadurecidos por anos de condições miseráveis de vida, da
indiferença de quem detém o poder, da falta de futuro.
Longe
dali, no comando do exército imperial, o Czar Nicolau II recebe as notícias da
agitação na capital. Numa típica reação, manda uma mensagem para que a
guarnição de Petrograd sufoque a manifestação. Confrontados com a possibilidade
de ter de atacar uma multidão de trabalhadores, na qual há milhares de
mulheres, os soldados se recusam e se amotinam. Nos dias seguintes, todos os
setores da sociedade russa voltam-se contra o Czar. Nicolau tenta ainda voltar
a Petrograd, mas seu trem é detido em Pskov, a quase 200 quilômetros de seu
destino. Lá, forçado pelo chefe do Estado Maior das Forças Armadas e por dois
deputados da Duma, ele abdica. No dia seguinte, tratado pelos guardas apenas
como Nicolau Romanov, ele e sua
família são levados prisioneiros para Tsarskoye Selo. A Duma, o parlamento
criado em 1903, assume o poder e transforma-se no Governo Provisório.
Passada
a euforia inicial, a situação vai delineando seus verdadeiros contornos. Na
realidade, existem dois governos. A
Duma, liderada por uma maioria composta de membros da nobreza e representantes
capitalistas, e os Soviets. Lenin
está de volta à Rússia e comanda, com seus bolsheviques,
a imensa teia destes pequenos conselhos, espalhados por todo o país. Com o
apoio incondicional da classe trabalhadora e dos camponeses, e com a crescente
simpatia da classe média, essa formidável máquina política exerce sua oposição
ao Governo Provisório fomentando greves, motins e protestos. É uma época de
caos total.
A
queda de braço continua por várias semanas. Mas aí, o Governo comete um erro
fatal. Debaixo da liderança dos conservadores, resolve continuar a guerra
contra a Alemanha. O desejo de um armistício que pusesse fim ao cruel tormento
que os anos de combate haviam trazido para o povo russo era quase uma unanimidade
num país sofrido e praticamente derrotado. A insensibilidade dos deputados é a chave
de que Lenin precisa para galvanizar a população e colocar sua máquina em movimento.
Por essa altura, os seus soviets já contam em seus quadros com
inúmeros integrantes de um exército demolido pelas derrotas cada vez mais frequentes.
Logo, os conselhos viram milícias. E as milícias transformam-se na Guarda Vermelha.
Nas
primeiras horas do dia 25 de outubro (7 de novembro no calendário gregoriano), a
Guarda toma o controle das estações
de telégrafo, das ferrovias e de vários pontos chave de Petrograd. As unidades
militares da capital ou aderem imediatamente ao movimento ou recolhem-se em
seus quartéis, sem oferecer resistência. O Chefe do Governo Provisório,
Alexander Kerensky, ainda tenta obter o suporte de tropas estacionadas fora do
perímetro urbano, escapando do cerco ao Palácio de Inverno ao volante de um Renault emprestado pela embaixada
americana.
Em
vão. Nada mais consegue impedir a maré vermelha. No começo da noite, os
revolucionários entram no Palácio e Lenin, pelo telégrafo, envia a toda a nação
um manifesto “Aos Cidadãos da Rússia”. O poder é dele.
Mas,
os anos que se seguem não trazem tranquilidade. A radicalização dos meios
empregados pelos bolsheviques ainda desagrada várias fatias da sociedade e contraria
muitos interesses. O confronto é inevitável e, entre 1918 e 1922, a Rússia
amarga uma brutal guerra civil entre os Vermelhos
de Lenin e os Brancos, um
amálgama heterogêneo de cossacos, oficiais do antigo exército imperial e um
espectro de posições políticas que vai desde a extrema direita até socialistas
mais moderados. Chega até a haver uma discreta ajuda militar por parte de
países como a França, os Estados Unidos e o Japão, mas os Vermelhos acabam por vencer. É finalmente fundado o Partido
Comunista e nasce a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Será
um experimento sócio-político-econômico que durará 70 anos e será exportado
para o mundo, criando uma zona de influência e doutrinação em todos os
continentes. Na terra onde se originou, passará por gigantescos pogroms, pelo flagelo da invasão
nazista, pela Guerra Fria. Três gerações depois de Lenin, o experimento dará
sinais de exaustão. O comunismo puro não se sustentará como solução definitiva
para o bem-estar do povo e derivará para as várias versões de socialismo hoje adotadas
mundo afora. A pergunta que fica é a seguinte. Será que valeu a pena?
Oswaldo Pereira
Janeiro 2018
Claro que valeu ! O diálogo entre socialismo e capitalimo é a artéria que ainda pode minimizar a tendência totalitária das muitas faces do Poder. Seu texto é comovente. Uma presença na madrugada. Meu pai nasceu em 17. Falava de Marx,Engels e Lenin como se falasse de irmãos. E eu não entendia pq MarX não era russo.rs
ResponderExcluirQuando escreveu Das Kapital, Marx nunca imaginou que sua teoria virasse prática na Rússia. Seu foco era nas grandes economias europeias, como a Grã-Bretanha, a França e a sua própria Alemanha. Concordo com o que você escreveu, mas precisava ter existido um Stalin??
ExcluirExacto: precisava de existir Stalin? Não saberemos nunca como seria o futuro sem ele!? Mas podemos pensar...
ResponderExcluirTalvez o comunismo abrandasse, ou até migrasse para um regime menos brutal. Mas aí, será que a Rússia, como a conhecemos hoje, ainda existiria?...
Excluir...menos ainda Mao Tze Tung.
ResponderExcluirEste então...
ExcluirSim, penso que sim. Você escreveu o último parágrafo e vejo que foi o que aconteceu. O comunismo puro , vimos que é impossível, mas a lição está em tudo que aconteceu , o socialismo tão estudado e falado e praticado aos pedaços nos mostra que valeu pelo que podemos conhecer hoje. E, tudo é lição, não é?
ResponderExcluirSem dúvida. E o aprendizado histórico nunca é linear.
ExcluirSim, concordo. Também aprendemos muito a história tempos depois dos acontecimentos. Pego a Enciclopedia Britânica e estou sempre lendo, principalmente quando alguém se refere a fatos passados. Gosto de ajuntar o que cada um diz e somar e sentir , muitas vezes como a coisa é interpretada.
ResponderExcluira História sempre ensina. O problema é que, às vezes, ela é escrita apenas pelos vencedores...
Excluir