Acabei de ver Silêncio. A ideia foi boa,
mas acho que o Scorsese errou na mão. Ou melhor, errou momentos e acertou
outros, imprimindo ao filme exatamente seu pior defeito. A instabilidade de sua
intensidade, uma sucessão de altos e baixos, de tons agudos e graves, como um
rádio de som desregulado. A linha narrativa acaba sofrendo e as interpretações
também, principalmente a do protagonista, Andrew Garfield (candidato ao Oscar
por Hacksaw Ridge), expressivo demais
em algumas cenas e profundamente estático em outras. Em suma, o efeito não é
bom.
O que se salva é a fotografia. E a
história.
Silence
é
a crônica de dois jesuítas portugueses que, no século XVII, vão ao Japão à
procura de um outro missionário, um catequista de primeira ordem e imensamente
respeitado, cujo desaparecimento suscita relatos de que tenha abandonado seus
votos e renegado a fé. Baseado num
romance do escritor japonês Shusaku Endo, o roteiro tem seu ponto central no
conflito surgido no Japão na esteira da reação anticatólica promovida pela
cultura budista na primeira metade dos anos 1600.
Intolerância religiosa. Como ao mesmo
tempo estou lendo um livro sobre os templários e as cruzadas, o tema acaba por
desaguar nestas páginas. E volto a repetir uma constatação que sempre me
espantou. Guerras e perseguições movidas pela fé mataram mais gente na História
deste planeta do que qualquer outra causa. Como é possível que justamente
crenças que professam a prática do bem e da misericórdia tenham desencadeado os
piores flagelos da Humanidade? Como é crível que compreensões diferentes de um
mesmo deus e de um mesmo princípio de justiça eterna sejam capazes de acirrar
tamanho ódio?
As repostas poderão ser várias, mas essa
triste constatação ainda sobrevive nos noticiários dos nossos dias. O mundo
dividido do século XVII já o era antes, e continua a sê-lo. Cada vez mais,
pasmem. E não é apenas a incompatibilidade de ideologias religiosas. A
proximidade virtual, que deveria unir-nos, afasta-nos. As redes da Internet vieram abrir uma arena onde
divergências políticas, sociais, comportamentais e até esportivas são
espicaçadas até destilarem a última gota de veneno. Seus chamamentos acabam
lavando para a rua, para as praças e para os estádios o confronto gerado no
Face ou no Twitter.
Talvez seja da condição humana. Não
conseguimos ler a mensagem. Ou se a lemos, não conseguimos praticá-la.
Num dos bons momentos de Silêncio, um monge budista tenta
convencer o missionário jesuíta a renegar o catolicismo, aprisionando seus
seguidores e supliciando-os. À vista de seus fiéis pendurados de cabeça para
baixo, o padre é informado de que só com a sua apostasia eles seriam
libertados. Mesmo assim, ele resiste, invocando a fé e dizendo. Eles estão fazendo isto por Jesus. O
monge abana a cabeça e responde. Eles não
estão fazendo isto por Jesus. Estão fazendo isto por você...
É o fator homem. Desvirtuador e sinuoso, um cristal quebrado querendo filtrar
uma luz perfeita. Como dar certo?
Oswaldo
Pereira
Março
2017