domingo, 26 de março de 2017

ORAÇÃO DA MANHÃ



ORAÇÃO DA MANHÃ
(POR UM MUNDO QUE PERDE SEU RUMO)

Desce à Terra. Por favor.
Traz perfume. Traz sinfonia.
Traz amor.

Traz anjos consigo.
Com cestos de flores, samburás de cores
Singelas, amarelas
Azuis, se possível.

Faça-as distribuir
Pelos campos de batalha
Pelos vales de dor
Pelo mar que seca, o ar que sufoca
Apazígua Meca
Amansa o Levante
Inspire o Ocidente
Até onde a vista puder alcançar

Como bom ilusionista
Tira a Esperança da cartola
Nos dá um pão sem veneno
Um horizonte pleno
Corrige os erros
Da Humanidade enlouquecida
Apascenta sua ânsia desvairada
Sua ganância
Joga pétalas de rosa
Nas cinzas do presente

E arranja para nós
Um Futuro
Decente

Oswaldo Pereira
Março 2017

quarta-feira, 22 de março de 2017

A VERDADE



O filme Jackie tem como pano de fundo uma entrevista dada pela ex-primeira dama algum tempo após a morte do marido. Esta entrevista, concedida na vida real por Jacqueline ao jornalista da LIFE Theodore White, mostrou ao país ainda traumatizado pelo assassinato de John Kennedy uma mulher disposta a eternizar a figura mítica de um Presidente maior que seus feitos e a emoldurar seu breve período no comando da Nação com a lenda de Camelot.

O filme aproveita para acentuar sutilmente uma procura pela verdade, quando Jackie diz ao repórter que um acontecimento não se tornava “verdade” só por terem escrito sobre ele. Na sequência, ela refere-se à televisão, à época ainda na sua infância como fonte de notícias, como sendo a nova garantidora da fidelidade dos fatos. As suas imagens dissipariam as incertezas ou a distorção que relatos apenas lidos ou ouvidos poderiam causar.

É interessante, ou mesmo proposital, que o filme, embora passando ao largo da polêmica que iria ser criada em torno do mais divulgado assassinato do século XX, mencione de raspão sua inquietação sobre um dos mais discutidos crimes da História Moderna.

Até hoje a morte de Kennedy é motivo de suspeitas, teorias, desconfianças e dúvidas. A impressão é que a tal verdade tão idealizada por Jacqueline nunca seja atingida nesse caso. E aí fica a pergunta. O que é mesmo a verdade? Ou ainda, mais provocativamente, existe mesmo a verdade?

Sim, é claro que eu sei que um fato é uma verdade. Mas um fato é um átimo de segundo. O que faz a permanência do fato é o seu registro, por alguém que o viu ou o filmou ou fotografou. E ele só vai continuar existindo na medida em que quem o viu o relate, com todas as imperfeições interpretativas do ser humano. A partir daí o fato nunca será o mesmo. No caso da foto ou do filme, o fator interpretativo passará para todos aqueles a quem eles forem mostrados. Como esperar que a verdade sobreviva?

Estou escrevendo esta filosofia de fim de tarde observando um poente de primavera nova da minha janela portuguesa.
É lindo... E isto é um fato. Será verdade?


Oswaldo Pereira
Março 2017





terça-feira, 14 de março de 2017

SILÊNCIO



Acabei de ver Silêncio.  A ideia foi boa, mas acho que o Scorsese errou na mão. Ou melhor, errou momentos e acertou outros, imprimindo ao filme exatamente seu pior defeito. A instabilidade de sua intensidade, uma sucessão de altos e baixos, de tons agudos e graves, como um rádio de som desregulado. A linha narrativa acaba sofrendo e as interpretações também, principalmente a do protagonista, Andrew Garfield (candidato ao Oscar por Hacksaw Ridge), expressivo demais em algumas cenas e profundamente estático em outras. Em suma, o efeito não é bom.

O que se salva é a fotografia. E a história.

Silence é a crônica de dois jesuítas portugueses que, no século XVII, vão ao Japão à procura de um outro missionário, um catequista de primeira ordem e imensamente respeitado, cujo desaparecimento suscita relatos de que tenha abandonado seus votos e renegado a fé.  Baseado num romance do escritor japonês Shusaku Endo, o roteiro tem seu ponto central no conflito surgido no Japão na esteira da reação anticatólica promovida pela cultura budista na primeira metade dos anos 1600.

Intolerância religiosa. Como ao mesmo tempo estou lendo um livro sobre os templários e as cruzadas, o tema acaba por desaguar nestas páginas. E volto a repetir uma constatação que sempre me espantou. Guerras e perseguições movidas pela fé mataram mais gente na História deste planeta do que qualquer outra causa. Como é possível que justamente crenças que professam a prática do bem e da misericórdia tenham desencadeado os piores flagelos da Humanidade? Como é crível que compreensões diferentes de um mesmo deus e de um mesmo princípio de justiça eterna sejam capazes de acirrar tamanho ódio?

As repostas poderão ser várias, mas essa triste constatação ainda sobrevive nos noticiários dos nossos dias. O mundo dividido do século XVII já o era antes, e continua a sê-lo. Cada vez mais, pasmem. E não é apenas a incompatibilidade de ideologias religiosas. A proximidade virtual, que deveria unir-nos, afasta-nos. As redes da Internet vieram abrir uma arena onde divergências políticas, sociais, comportamentais e até esportivas são espicaçadas até destilarem a última gota de veneno. Seus chamamentos acabam lavando para a rua, para as praças e para os estádios o confronto gerado no Face ou no Twitter.

Talvez seja da condição humana. Não conseguimos ler a mensagem. Ou se a lemos, não conseguimos praticá-la.

Num dos bons momentos de Silêncio, um monge budista tenta convencer o missionário jesuíta a renegar o catolicismo, aprisionando seus seguidores e supliciando-os. À vista de seus fiéis pendurados de cabeça para baixo, o padre é informado de que só com a sua apostasia eles seriam libertados. Mesmo assim, ele resiste, invocando a fé e dizendo. Eles estão fazendo isto por Jesus. O monge abana a cabeça e responde. Eles não estão fazendo isto por Jesus. Estão fazendo isto por você...

É o fator homem. Desvirtuador e sinuoso, um cristal quebrado querendo filtrar uma luz perfeita. Como dar certo?

Oswaldo Pereira
Março 2017









quarta-feira, 8 de março de 2017

O DIA DE EVA



A história foi mal contada. Não podia ser de outro jeito. Afinal, quem a escreveu foram os homens. Pareceu bem dizer que Eva saíra da costela de Adão. Assim, Eva seria secundária, subserviente, devendo sua existência menor ao macho, este sim o senhor do Mundo. Um destino imposto.

E Adão acabou acreditando em sua própria mentira, iludindo-se por milênios na fantasia que criara. “Eu sou o Rei. Eu sou o Dono. Eu mando, eu uso, eu faço, desfaço. Ela obedece, feliz por saciar meus instintos, parir minha prole, encher meu estômago, sumir em seu silêncio, esperar-me no leito. Sua sina é louvar-me, curvar-se, dar-se. E servir-me.”

Pobre Adão. Cegado pela intensa luz de seu orgulho, nunca percebeu.

Eva é a Rainha. Mãe e deusa, chuva, sol e Primavera. Começo, origem e destino. Caminho, musa e poesia. Canção, rima e sinfonia. Revelação e mistério, enigma e solução.

Um dia Adão descobrirá. Tomara que seja hoje, no dia dela. E que, para sempre, a reconheça, todo dia, toda hora. Dona e senhora.


Oswaldo Pereira
Março 2017

Todo ano, eu rendo uma modesta homenagem a elas, Evas de todo o mundo. Quem quiser ler os textos dos anos anteriores é só clicar nos links abaixo.