quinta-feira, 28 de agosto de 2014

ANEXINS






Vá ao dicionário. Anexim é sinônimo de adágio, máxima, apotegma, brocardo, epodo, prolóquio, rifão, aforismo, axioma. Mais coloquialmente, ditado.

Convivi com ditados desde a minha mais tenra idade. Eram a arma verbal que pais, avós e tios lançavam mão para sedimentar ensinamentos duros de entrar nas cabecinhas avoadas das crianças de então. Haviam-nos aprendido, também eles, de seus familiares mais velhos, numa transmissão oral que se perdia nas gerações anteriores, alguns oriundos das aldeias da Idade Média e fruto da sabedoria adquirida pela observação da condição humana ao longo de séculos.

Não sei dos outros povos, mas Portugal é pródigo em anexins. São milhares, um ou vários para cada situação, seja ela ligada ao tempo e suas ações sobre a natureza e os homens, à sorte ou à desventura, ao amor e à falta dele, ao futuro, ao passado, ao presente. E cada um deles encerra um conselho, precioso na medida que é produto de uma sabedoria acumulada na esteira de muitas centenas de anos e transmitida pela repetição insistente, dia após dia.

Em sua quase totalidade, são absolutamente verdadeiros. Como esses quinze que fui recolhendo, ouvindo-os em serões ao pé do fogão de lenha em noites frias, lendo-os em clássicos do Eça e descobrindo-os em cancioneiros tradicionais, experimentando sua veracidade após, às vezes, ter duvidado dela. Basta lê-los com atenção, talvez demorando em suas palavras, até que seu significado seja percebido por inteiro e em perspectiva. Aí vão eles: 

A ventre farto, o mel amarga
Até ao lavar dos cestos, é vindima
Arco sempre armado, ou frouxo ou quebrado
Amigo que não presta e faca que não corta; que se percam, pouco importa
Como fizeres, assim acharás
Galinha que canta, faca na garganta
Mais vale um TOMA que dois TE DAREI
Mal alheio pesa como um cabelo
Não fales nada sem consultar a almofada
Não há atalho sem trabalho
Não mates mais do que possas salgar
Nem sempre nem nunca
Olhar para a uva não mata a sede
Quem pássaros receia, milho não semeia
Um dia não são dias

E ainda este, que reservei para o final. Não vem da idade média nem da época dos descobrimentos. Foi criado pelo poeta surrealista português Alexandre O'Neill na década de 1980, para uma campanha de segurança nas praias.

Há mar e mar, há ir e voltar

Mas, se olharmos bem para a mensagem podemos ver muito mais além. É a grande aventura da vida. Um mar chão, um oceano em procela, um pélago profundo. Pode ser tudo. Só precisamos ter cuidado na escolha do barco e manter os olhos na Estrela do Norte. Para não ter medo de ir. E para saber voltar.


Oswaldo Pereira
Agosto 2014










  

domingo, 24 de agosto de 2014

A AÇÃO DO TEMPO




A gigante Home Box Office, mais conhecida como HBO, já iniciou as gravações da quinta temporada de seu maior sucesso nos recentes tempos – a série Game of Thrones (A Guerra dos Tronos). Produzida por David Benioff e D. B. Weiss, a trama baseia-se com extrema fidelidade na bela obra literária A Song of Ice and Fire, traduzida no Brasil com o título de “As Crônicas de Gelo e Fogo”, escrita por George R. R. Martin, um americano de Nova Jérsei. Martin, que na infância foi um leitor voraz de histórias em quadrinhos (possui hoje uma das maiores coleções da “Fase Prata” dos comics), formou-se em jornalismo, antes de começar a escrever contos de ficção científica, terror e fantasia na década de 1970, assim como roteiros para TV a partir daí. Ele, que também co-produz a série, já escreveu cinco livros das “Crônicas”, de um total de sete, todos respeitáveis volumes de quase mil páginas. Os quatro primeiros serviram de base para as temporadas já levadas ao ar com retumbante aceitação, tanto pela crítica como pelo público. Os últimos 10 capítulos, transmitidos entre abril e junho deste ano, atraíram uma audiência média, só nos Estados Unidos, de 7,1 milhões de espectadores.

São vários os fatores que fazem de Game of Thrones o grande sucesso que é. Para começar, a própria história em si, um emaranhado de conflitos humanos e políticos que tece uma tapeçaria intrincada de dramas pessoais e sociais, tendo como pano de fundo um mundo mítico ambientado num período medieval que tem milhares de anos de existência. No seu lançamento, em abril de 2011, a série foi inclusive rotulada, para efeitos de propaganda, de “os Sopranos da Terra Média”. Depois, a plástica visual, que soma uma direção de arte de ricos detalhes à escolha de deslumbrantes lugares para servirem de locação (as cenas têm sido filmadas em regiões de fantástica beleza na Irlanda do Norte, em Malta, na Croácia e na Islândia; a quinta temporada está sendo rodada no sul da Espanha).

Por fim, o cast. Como resultado de uma primorosa seleção, reunindo artistas antes quase desconhecidos a alguns nomes já mais tarimbados, a simbiose dos personagens da tela com seus correspondentes nos livros é perfeita (destaque para o ator Peter Dinklage, que representa uma das figuras mais proeminentes da trama – o príncipe anão Tyrion Lannister). E, especialmente para bondmaníacos como eu, é um prazer reconhecer, debaixo de suas caracterizações, alguns velhos conhecidos.
CHARLES DANCE NO PAPEL DE TYWIN LANNISTER

O primeiro é Charles Dance que, além de ter trabalhado (num papel secundário) em For Your Eyes Only (Somente Para Seus Olhos), encarnou o escritor Ian Fleming na produção para TV Goldeneye (O Espião de Ouro). Outro é Sean Bean, o Agente 006 Alec Trevelyan, colega e depois inimigo de Bond, no filme Goldeneye.

SEAN BEAN COMO 006 E EDDARD STARK

Mas, a maior revelação foi tão inesperada quanto agradável. Uma das inúmeras famílias que contendem pelo poder em Game of Thrones é capitaneada por uma simpática e ardilosa vovó chamada Olenna Tyrell. Sua atuação é ótima, a ponto de a atriz que a representa ter sido nomeada para o Emmy 2014, que acontece amanhã em Los Angeles. E ela é, nada mais, nada menos, que a inesquecível Diana Rigg, ícone da história bondiana como Teresa Bond, a única mulher a se casar com o Agente, no antológico On Her Majesty Secret Service (007 A Serviço Secreto de Sua Majestade, 1969).

DIANA RIGG COMO OLENNA TYRELL (2014)

DIANNA RIGG COMO TERESA BOND (1969)


Foi difícil reconhecê-la. Coisas da ação do tempo...


Oswaldo Pereira
Agosto 2014



terça-feira, 12 de agosto de 2014

DESTINOS CERTOS: KERRY, IRLANDA



Por volta do ano 1000 a.C., eles chegaram. Dominando a parte ocidental da Europa, enquanto o Egito dos faraós se estendia da nascente do Nilo até às margens do Mediterrâneo e os reis helênicos sitiavam Tróia, eles haviam espraiado suas tribos de mulheres e homens louros, ruivos, altos e fortes desde a França até a Península Ibérica. Então, inspirados por sua índole aventureira, decidiram se fazer ao mar e, aproveitando os ventos e as correntes favoráveis do Atlântico, aportaram numa ilha verde como uma esmeralda mágica, onde vales gentis escondiam lagos de todas as cores, desfiladeiros de pedra ecoavam seus gritos de guerra e um mar de profundo azul tornava-se espuma branca nas escarpas de rocha negra.

GUERREIROS CELTAS
Os gregos os chamavam de keltoi, os selvagens. Mas sua avançada cultura da Idade do Ferro e seus conhecimentos de cultivo e pecuária já eram muito superiores aos dos povos que habitavam a ilha, caçadores-coletores do neolítico. Chegaram, conquistaram e começaram a marcar sua presença. Usos, costumes, língua e tradição que hoje, trinta séculos depois, vivem nas pedras tumulares que rodeiam igrejas, na epiderme alva e nos cabelos e olhos claros de uma população risonha e no intricado idioma que precede o inglês nos sinais de trânsito e nas placas das ruas.


Do grego keltoi veio o nome pelo qual nós os conhecemos atualmente - celtas. E este acolhedor pedaço de terra, de povo eternamente bem-humorado e natureza apadrinhada pelos céus, chama-se Kerry, o Condado que ocupa todo o sudoeste da Irlanda. Se você acha que conhece todas as gradações do verde, e nunca foi a Kerry, engana-se. Ali, a terra fabrica matizes, nuances e variações da cor que o perplexo visitante nem pensava possíveis de existir. Tons inteiros, meios-tons, quartos de tons, uma policromia verdosa que colore campos, bosques, reservas florestais, colinas e os onipresentes vales. De tirar o fôlego.


ILHA DE SKELLIG MICHAEL

Mas, recomponha-o rapidamente para percorrer o Ring of Kerry, um circuito que leva até o mar por estradas que margeiam o recorte tortuoso da costa atlântica, salpicadas de miradouros de vistas inesquecíveis, como o que permite contemplar à distância as rochas de Skellig, agudas e míticas agulhas de pedra que, neste ano, estão servindo de location para o filme Star Wars 7. A relação com o cinema continua em Waterville, uma charmosa vila praieira onde Charlie Chaplin vinha passar férias. Siga em comunhão com o tempo, que pode sem aviso mudar de um ensolarado para um chuvoso verão em segundos. Ninguém se apoquenta, pois a chuva é sempre benfazeja e, assim como aparece, some atrás das colinas. Com ou sem ela, pare no Ladies View, um belvedere obrigatório para quem quer ver, ainda uma vez, o espetáculo grandioso da união quase mitológica de céu, terra e oceano. 

IGREJA DE KILMALLKEDAR
No dia seguinte, um outro passeio imperdível – a Península de Dingle. Vá e veja a história da Irlanda desenrolar-se na sua frente, desde a fusão dos deuses antigos dos celtas e suas runas com a cruz católica trazida pelo padroeiro Saint Patrick, às fortalezas de pedra murmurando gravemente um passado de lutas tenazes contra vikings e normandos. O Oratório de Gallarus, erigido há mais de 1.300 anos, a igreja de Kilmallkedar e seu cemitério milenar e mais castelos da Baixa Idade Média compõem um mosaico que mistura sacerdotes druidas com santos católicos numa simbiose histórico-religiosa que está na medula do povo irlandês. Acha suficiente? Pois não é! Ainda tem as extensões de campinas verdejantes que descem em direção às praias. Hollywood outra vez – na Península foram rodados vários filmes, entre os quais Ryan´s Daughter (A Filha de Ryan, 1970), uma das muitas obras-primas de David Lean, com Sarah Miles e Robert Mitchum, e Far and Away (Um Sonho Distante, 1992), estrelando Nicole Kidman e Tom Cruise. Na volta, pare na vila piscatória que dá nome à região e delicie-se com uma oferta de frutos do mar. E, por que não, com a companhia de uma caneca de Guinness...

Não perca o ritmo. Depois de dormir embalado pelas lendas de cavaleiros galantes, duendes travessos e lindas princesas, acorde para atravessar o Parque Nacional de Killarney e mergulhar mais fundo no passado entrando pelas ameias do Castelo de Ross, do século XV e passeando de barco pelo Lough Leane, o Lago do Conhecimento, até a ilha de Innisfallen, onde, no ano 640, São Finian construiu o primeiro mosteiro católico em terras de Irlanda. Perto dali, ficam as fazendas tradicionais de Muckross, mantidas em seu puro estado original para que possamos ter uma nítida visão da vida rural irlandesa na primeira metade do século passado. Aos que, como eu, foram criados em cenários semelhantes de Minas Gerais na década de 1940, é o mesmo que entrar numa máquina do tempo. No fim, a cereja do bolo – percorrer, ao trote de uma carroça puxada por uma incansável égua malhada, o Gap of Dunloe, uma falha geológica serpenteando seu verde e seus lagos por entre duas montanhas de granito. Não há como descrever a beleza extraordinária de mais este encanto de Kerry. Só indo lá para ver...

MOSTEIRO DE INNISFALLEN
O DIA-A-DIA NO ROSS CASTLE

























E, finalmente, um merecido descanso. Como ninguém é de ferro, devore uma generosa porção de um Irish Stew (carne de cabrito, batatas, alho-porro, couve, cenoura e aipo) ao som de canções tradicionais num típico restaurante irlandês. Como saideira, um potente irish coffee. Feito com Jameson, naturalmente...

Oswaldo Pereira
Agosto 2014