Foi hora de deixar Portugal. Sempre dói, um pouco. Sempre há poentes
dourados na véspera, estrelas vadias na noite, manhãs clareadas no dia, músicas
inesquecíveis no momento da partida.
Desta vez, além de não ser diferente, alguém colocou na TV a canção “Chuva”,
gravada ao vivo num show da Mariza. Aí, lembrei-me que, golpeado então pela sua beleza
e entontecido de saudade, escrevi há anos um texto chamado “Esquina de Lisboa”, que jaz
soterrado nos arquivos deste blog.
Resolvi republicá-lo. E inserir o link para a mágica apresentação
da Mariza. Achei que o meu pobre escrito ficaria melhor ao som dela. E vocês
poderiam talvez compreender mais este meu surto de nostalgia. E me perdoar por ele.
Esta
esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa
Estava
a frase num azulejo, com letra miúda inclinada em azul sobre um fundo branco, a
uns trinta centímetros do chão, embutida na parede pintada de amarelo. Andando
ligeiro, prestando atenção no movimento, atento ao tráfego, interessado numa
vitrina, mesmo o mais observador transeunte não a veria. Era uma informação
pequena, quase obscura, feita para não ser vista, uma mensagem atirada ao nada.
À noite, então, pior era, engolida pela iluminação precária daquela curva da
cidade, desfigurada nas sombras.
Mas
ela estava ali, e ali provavelmente deveria ter estado há muito, amornada pelo
sol ou borrifada da chuva, por quanto tempo não sei, nem tenho como saber. Só
sei que, um dia, a vi. Um dia em que procurava achar a Baixa em meio aos meus
desatinos, em que andava a procura de um norte na escuridão de meus
desencantos, um sentido qualquer, uma explicação para o inexplicável, um
bálsamo para as minhas aflições. A vida me largara, ou eu me largara dela,
tanto faz, aí a ordem dos fatores não altera o produto, mas o rumo
desaparecera, o que restava eram labirintos, sinais trocados, ruas sem saída.
Esta
esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa
Por
que só viu o poeta? E qual poeta teria visto? Quem seria o poeta naquele dia,
ou naqueles dias em que passara e a esquina o vira? Bernardo Soares em seu
desassossego? Ricardo Reis antes de ir para o Brasil? O filósofo Alberto Caeiro
ou o torturado Álvaro de Campos?
E
por que só vira o poeta? E os outros, os “nós” anônimos, os comuns, os iguais,
os despercebidos, os desimportantes, os esquecidos, os zés e as marias ninguém,
os “eu” sem ribalta, as gentes do dia a dia, os náufragos da noite, todos com
suas estórias para contar.
Talvez,
só porque o poeta a dele contara. Talvez só porque ele escancarara suas entranhas,
dera ao repasto do mundo e do futuro sua alma como alimento. E então, por isso,
a esquina o registrara e orgulhosa do fato de tê-lo visto, de ter ouvido o
ruído do taco de seu sapato ressoando na pedra da calçada, ali tão perto, quis
apregoar a ventura de ter sentido a genialidade agitar o mesmo vento que a
acariciava.
Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa
Viu passar Fernando Pessoa
E
agora me vê aqui. O vento não me acaricia; é nortada fria e molhada que me
ensopa até os ossos, mas são o medo e a solidão que me gelam por dentro. A
Baixa está vazia e lúgubre, lavada de chuva e caída no silêncio. Longe estão os
verões dos turistas coloridos, das tardes de sol, dos pregões sonoros. Mais
longe ainda está o meu verão, o verão meu que imaginava eterno, dos radiosos dias
de amanhãs sem presságios, da felicidade ao alcance de um aceno. Onde foi a
sensação de vida por viver, de tempo que obedecia ao ritmo do meu coração,
parando quando eu queria, correndo quando eu mandava?
Ah,
poeta! Você que aqui passou, que tanto sabia de angústias e de medos, que
tantas vezes e de tantas maneiras os cantou, por que não me ajuda a destilar
minha alma, a aliviar meus humores e minha bílis? Como gostaria de trocar esta
febre insidiosa pelas dores do parto de uma poesia, de um embrião de palavras
escritas que depois desabrochassem num soneto de amor, nuns versos perfeitos de
rimas ricas.
Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa
Viu passar Fernando Pessoa
Adeus,
esquina. Vou-me embora. Não tive resposta do poeta. Ele terá as suas razões.
Afinal, poesia não é arte que se aprenda por osmose. Não adianta cá ficar,
esperando por uma centelha, um toque, um sussurro. A inspiração não vem assim,
de presente, de graça, flutuando no ar como um balão de festas. Ela é dádiva
rara, de um deus sovina e aleatório que, sabe-se lá por que critérios, escolhe
alguém ao acaso e o regala com o dom de domar vocábulos, encilhar frases,
cavalgar estrofes. De mim, nada sairá. Nem uma trova, nem mesmo um verso de
cordel ou ainda um simples hai-kai.
Adeus,
esquina. O poeta de novo aqui não passará. Só sua fama anda por aí, mas está
dispersa pelo mundo, glorificada na memória das gerações de agora e do porvir.
É imensa, galáctica, universal. Duvido que de ti tome conhecimento, assim como
todos os que por ti passam, imersos em suas vidas, guiados pelos semáforos,
atiçados pelas vitrinas, são imunes à tua rima pobre.
Só eu, esquina. Só eu te vi e ouvi teu grito para o nada. Esquece o
poeta. Registra esta noite, o meu desalento, a nossa solidão. E escreve:
Esta
esquina de Lisboa
Viu
passar... uma pessoa
Oswaldo
Pereira
Outubro 2019
Lindíssimo teu comentário!
ResponderExcluirÓ prima, que bom ler teus imerecidos elogios.
Excluir...tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.
ResponderExcluir...tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.
ResponderExcluirIsto sim, é poesia....
ExcluirMuito bom. Gostei muito.
ResponderExcluirObrigadíssimo, caro homônimo.
ExcluirFabuloso! Magnífico !
ResponderExcluirEmbora nada diga continuo SEMPRE a lê-lo. Desta vez não resisti a um comentário.
Embora nada diga continuo SEMPRE a lê-lo.
ResponderExcluirMagnífico!Fabuloso!
Querida La Salette,
ExcluirQue bom saber que ainda lês os meus pobres escritos. E muito obrigado pelo seu precioso comentário.
Lindo texto. Tenho certeza de que o Fernando Pessoa estaria feliz de conhecer a Pessoa que um dia pisou em seus passos, numa esquina de Lisboa.
ResponderExcluirGrande abraço.
E eu mais feliz ainda. Obrigado, querido amigo.
ExcluirFernando Pessoa diria,"quem tão bem escreve os meus pensamentos?".Li e reli.Poesia,e ansiedaade,é até angústia.Sente-se a necessidade que você tem de estar escrevendo. PARABÉNS.
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