terça-feira, 22 de outubro de 2019

STF



Barbosa, Augusto e Juvenal, Bauer, Danilo e Bigode, Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico...
Ou ainda
Gilmar, Djalma Santos, Bellini e Nilton Santos, Zito e Orlando, Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagallo.
Mais uma?
Felix, Carlos Alberto, Brito e Piazza, Everaldo e Clodoaldo, Jairzinho, Gerson, Pelé, Tostão e Rivellino.

Brasileiros, desde o tempo em que a seleção era chamada de scratch, lembram destas formações. Perdedores em 1950, mas consagrados na Suécia em 1958 e no México em 1970, a escalação da equipe nacional de futebol era como uma prece, um mantra conhecido por toda a população.  Seus nomes evocavam, e ainda hoje evocam, o que de melhor tínhamos a cultuar. País do futebol. Embora um pouco depreciativo, o apelido reconhecia a nossa habilidade e a maestria no domínio da bola e rendia um certo ufanismo nos corações pátrios. Nomes inesquecíveis...

Hoje, principalmente depois da hecatombe frente à Alemanha na Copa de 2014, poucos são os compatriotas que conseguem recitar por inteiro o time nacional. Os deuses deixaram de andar pela Terra. Outras preocupações vieram diminuir o romantismo do futebol e, embora ainda pujante como esporte, saiu um pouco da cena brasileira. O Brasil vai entrar em campo. Mas, quem é mesmo que vai jogar?...

No entanto, hoje há um outro onze que está na boca do povão. Basta perguntar por aí, e a quase maioria vai entoar tintim-por-tintim seus nomes. Quem não sabe?

Gilmar, Fux e Marco Aurélio, Fachin, Alexandre e Celso, Weber, Lewandovsky, Toffoli, Barroso e Carmen Lúcia.

Para os meus abnegados leitores que não moram no Brasil, eu explico. Este plantel é a constituição atual do Supremo Tribunal Federal, o órgão máximo da justiça brasileira. Vocês, então, poderão pensar que nós evoluímos e que trocar o culto a futebolistas por interesse em juízes togados seria a indicação de uma inesperada seriedade e um louvável fervor cívico.

Nem tanto.

O presente protagonismo do STF vem de outra origem. Embora designado institucionalmente para ser a instância final do processo legal, guardião e intérprete por excelência da Constituição, o Supremo tem sido palco de jogos de interesses que extrapolam sua função e conspurcam seu lugar.

Aproveitando o caráter leniente da legislação penal brasileira, os magistrados da suprema corte têm dado, com raras e honrosas exceções, um show de bola no que tange à suavização de penas e protelação de condenações de políticos envolvidos em tenebrosos casos de malversação de recursos públicos.

Num país em que mais de trinta mil pessoas têm direito a foro privilegiado, isto é, tratamento diferenciado perante a lei e, na prática, um bilhete premiado de impunidade, uma corte branda e conivente é tudo o que não se precisa.

Agrava a situação o fato de que a Constituição atual, promulgada em 1988, três anos após o término do regime militar, foi elaborada com sentimento de culpa. Procurando expurgar o arcabouço legal de possíveis exageros de autoritarismo, os constituintes empurraram o pêndulo para o extremo oposto, criando um diploma que, além de absurdamente extenso (508 artigos!), é um buquê de salvaguardas que qualquer ardiloso advogado pode lançar mão para adiar a condenação de seu cliente.

Haja vista que o país, nos últimos 12 anos, sofreu o maior assalto aos cofres públicos de sua história, um episódio de corrupção inédito no mundo que enredou os seus líderes políticos num obsceno esquema de enriquecimento ilícito pessoal e partidário, era de se esperar que o Supremo Tribunal Federal apoiasse e ratificasse a extraordinária ação de um punhado de juízes e procuradores na luta contra o crime – a Operação Lava-Jato.

Infelizmente, não é o que se vê. Remando ao contrário do sentimento de justiça e de cobrança da maioria da população brasileira, o STF afasta-se da realidade, encastela-se em sua visão torta do Direito e vem-se firmando como o Inimigo Público número 1 das esperanças nacionais.

As seleções de futebol do passado são lembradas com respeito. O atual time de magistrados inspira apenas repulsa, revolta e desprezo.

Oswaldo Pereira
Outubro 2019

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

SAUDADES DE PORTUGAL




Foi hora de deixar Portugal. Sempre dói, um pouco. Sempre há poentes dourados na véspera, estrelas vadias na noite, manhãs clareadas no dia, músicas inesquecíveis no momento da partida.

Desta vez, além de não ser diferente, alguém colocou na TV a canção “Chuva”, gravada ao vivo num show da Mariza. Aí, lembrei-me que, golpeado então pela sua beleza e entontecido de saudade, escrevi há anos um texto chamado “Esquina de Lisboa”, que jaz soterrado nos arquivos deste blog.

Resolvi republicá-lo. E inserir o link para a mágica apresentação da Mariza. Achei que o meu pobre escrito ficaria melhor ao som dela. E vocês poderiam talvez compreender mais este meu surto de nostalgia. E me perdoar por ele.



Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Estava a frase num azulejo, com letra miúda inclinada em azul sobre um fundo branco, a uns trinta centímetros do chão, embutida na parede pintada de amarelo. Andando ligeiro, prestando atenção no movimento, atento ao tráfego, interessado numa vitrina, mesmo o mais observador transeunte não a veria. Era uma informação pequena, quase obscura, feita para não ser vista, uma mensagem atirada ao nada. À noite, então, pior era, engolida pela iluminação precária daquela curva da cidade, desfigurada nas sombras.

Mas ela estava ali, e ali provavelmente deveria ter estado há muito, amornada pelo sol ou borrifada da chuva, por quanto tempo não sei, nem tenho como saber. Só sei que, um dia, a vi. Um dia em que procurava achar a Baixa em meio aos meus desatinos, em que andava a procura de um norte na escuridão de meus desencantos, um sentido qualquer, uma explicação para o inexplicável, um bálsamo para as minhas aflições. A vida me largara, ou eu me largara dela, tanto faz, aí a ordem dos fatores não altera o produto, mas o rumo desaparecera, o que restava eram labirintos, sinais trocados, ruas sem saída.


Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Por que só viu o poeta? E qual poeta teria visto? Quem seria o poeta naquele dia, ou naqueles dias em que passara e a esquina o vira? Bernardo Soares em seu desassossego? Ricardo Reis antes de ir para o Brasil? O filósofo Alberto Caeiro ou o torturado Álvaro de Campos? 

E por que só vira o poeta? E os outros, os “nós” anônimos, os comuns, os iguais, os despercebidos, os desimportantes, os esquecidos, os zés e as marias ninguém, os “eu” sem ribalta, as gentes do dia a dia, os náufragos da noite, todos com suas estórias para contar.

Talvez, só porque o poeta a dele contara. Talvez só porque ele escancarara suas entranhas, dera ao repasto do mundo e do futuro sua alma como alimento. E então, por isso, a esquina o registrara e orgulhosa do fato de tê-lo visto, de ter ouvido o ruído do taco de seu sapato ressoando na pedra da calçada, ali tão perto, quis apregoar a ventura de ter sentido a genialidade agitar o mesmo vento que a acariciava.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa


E agora me vê aqui. O vento não me acaricia; é nortada fria e molhada que me ensopa até os ossos, mas são o medo e a solidão que me gelam por dentro. A Baixa está vazia e lúgubre, lavada de chuva e caída no silêncio. Longe estão os verões dos turistas coloridos, das tardes de sol, dos pregões sonoros. Mais longe ainda está o meu verão, o verão meu que imaginava eterno, dos radiosos dias de amanhãs sem presságios, da felicidade ao alcance de um aceno. Onde foi a sensação de vida por viver, de tempo que obedecia ao ritmo do meu coração, parando quando eu queria, correndo quando eu mandava?

Ah, poeta! Você que aqui passou, que tanto sabia de angústias e de medos, que tantas vezes e de tantas maneiras os cantou, por que não me ajuda a destilar minha alma, a aliviar meus humores e minha bílis? Como gostaria de trocar esta febre insidiosa pelas dores do parto de uma poesia, de um embrião de palavras escritas que depois desabrochassem num soneto de amor, nuns versos perfeitos de rimas ricas.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa


Adeus, esquina. Vou-me embora. Não tive resposta do poeta. Ele terá as suas razões. Afinal, poesia não é arte que se aprenda por osmose. Não adianta cá ficar, esperando por uma centelha, um toque, um sussurro. A inspiração não vem assim, de presente, de graça, flutuando no ar como um balão de festas. Ela é dádiva rara, de um deus sovina e aleatório que, sabe-se lá por que critérios, escolhe alguém ao acaso e o regala com o dom de domar vocábulos, encilhar frases, cavalgar estrofes. De mim, nada sairá. Nem uma trova, nem mesmo um verso de cordel ou ainda um simples hai-kai.

Adeus, esquina. O poeta de novo aqui não passará. Só sua fama anda por aí, mas está dispersa pelo mundo, glorificada na memória das gerações de agora e do porvir. É imensa, galáctica, universal. Duvido que de ti tome conhecimento, assim como todos os que por ti passam, imersos em suas vidas, guiados pelos semáforos, atiçados pelas vitrinas, são imunes à tua rima pobre.

Só eu, esquina. Só eu te vi e ouvi teu grito para o nada. Esquece o poeta. Registra esta noite, o meu desalento, a nossa solidão. E escreve:

Esta esquina de Lisboa
Viu passar... uma pessoa

Oswaldo Pereira
Outubro 2019



quarta-feira, 9 de outubro de 2019

ABSTENÇÕES



Portugal foi às urnas. Ou melhor, METADE de Portugal foi às urnas. A abstenção no pleito do passado dia 6, cujo objetivo era a escolha dos membros do Parlamento da Nação, chegou aos 45%. Nesta eleição de 2019, 300.000 portugueses a mais do que na última votação legislativa, cuja abstenção já fora alta, abriram mão do seu direito cívico de votar. O que isto quer dizer?

Quer dizer que há um desencanto. Que mais significativo fica quando verificamos que o fenômeno acontece na maioria das democracias europeias. O percentual médio de abstenção no Mercado Comum tem sido de 47%. Ou seja, um abandono maciço à opção usar uma das prerrogativas mais fundamentais das sociedades livres. A de escolher seus representantes, aqueles que farão as leis que regerão a vida e o destino de um povo durante seus mandatos.  Quando se pensa no sacrifício, na luta e no caminho árduo que muitos destes países tiveram de percorrer para conseguir chegar ao paraíso de uma liberdade plena, maior ainda fica esta perplexidade. O que está havendo?

Há várias opiniões e várias análises. Há os que prenunciam um declínio na vocação democrática de muitos países, indo até a especularem que a própria eficácia do princípio do decantado governo do povo, pelo povo e para o povo está com os dias contados. Muitos vaticinam que há países maduros para o apetite de algum populista ardiloso, cujo discurso mais radical possa arrebatar corações e mentes.

Outros veem defeitos não na filosofia democrática, e sim no mau uso do sistema, na falta de proximidade entre eleitor e eleito, que leva o cidadão a questionar e a desconfiar do verdadeiro valor de seu voto. No momento em que a sensação de representatividade amortece, o ideal da participação popular e de sua influência no comando político também desvanece, desaguando numa apatia profunda com relação ao dever de votar.

É este o grande desafio atual das sociedades democráticas. Resgatar o interesse do eleitor. Modificar, talvez, o processo eleitoral, estreitando a distância entre representantes e representados, convencer o cidadão de que seu destino pode estar em suas mãos, e fazê-lo aceitar que Democracia é um exercício constante, permanente, que não acaba no momento em que a cédula cai na urna ou um botão é premido num terminal. Que só vive em sua plenitude se o povo nela acreditar de verdade.

Oswaldo Pereira
Outubro 2019