De repente, março de 1964 volta a ser assunto. Contra
a recomendação do Governo para que os quartéis voltassem a homenagear o dia 31,
vozes se levantaram. Vi muita gente falando, e gente que nem nascido era então.
Resolvi, assim, desencavar um texto que publiquei aqui em 2014, quando o 31 de
março comemorava 50 anos. É o meu testemunho.
“Não sei quantos visitantes deste modesto blog têm idade suficiente ou, se a têm,
moravam no Brasil, para lembrarem-se dos acontecimentos ocorridos no país em
março de 1964. Afinal, já lá vai meio século.
Na época, eu estava na flor dos meus 23 anos, formara-me
em Direito quatro meses antes e, em fevereiro, fora admitido na General Electric
S.A. Era, assim, um cidadão em plena posse de sua capacidade de ver, escutar e
procurar entender o que se passava. Desta forma, não me estou referindo aos
acontecimentos por ter lido sobre eles ou ouvir dizer. Eu tenho a prerrogativa
de falar na primeira pessoa do singular. Eu estava lá.
Lá
era
um Brasil procurando seu rumo político, ainda em meio choque após a
surpreendente renúncia de Jânio Quadros, tentando digerir o que se seguira, a
tentativa de impedir a posse do Vice-Presidente João Goulart, o tour de force de um Parlamentarismo
esdrúxulo e de vida breve, a volta do Presidencialismo, vai-e-vens que abriam vácuos na cena institucional. Economicamente,
se de um lado o país começava a colher alguns frutos do processo de
industrialização disparado por Juscelino Kubitschek, por outro se via a braços
com uma insuportável pressão inflacionária gerada pelos custos estratosféricos da
construção de Brasília, suportados pelo desmantelamento dos fundos
previdenciários e pela emissão desenfreada de moeda. Exportávamos commodities e importávamos petróleo. Socialmente,
todo o mecanismo de distribuição de renda ainda era pífio e a pirâmide de
riqueza perversamente elitizada e corporativista. Para azedar ainda mais o
caldo, o Governo do recém-criado Estado da Guanabara (correspondente à região
metropolitana da ex-Capital, o Rio de Janeiro) era ocupado por um dos maiores e
mais temidos tribunos políticos da época, o carismático, e aspirante a
Presidente, Carlos Lacerda. Sua queda de braço com o Poder Central era o prato
do dia.
Lá
também
era um mundo extremamente polarizado pela Guerra Fria. Estados Unidos e União
Soviética, que por sua vez mantinha uma relação de amor e ódio com a China de
Mao, trocavam insultos para a plateia, flexionavam os músculos de seus
arsenais, apostavam corrida para a Lua e inspiravam uma legião de escritores de
spy novels. Mas, havia um balanço
nervoso. Ninguém estava mesmo a fim de apertar o botão vermelho e destruir o
planeta. O que cada lado almejava era manter os seus quintais. A América, o
Continente Americano e a parceria com a Europa Ocidental; os Russos, a Europa
de Leste e, com os chineses, todo o Extremo Oriente. África e Oriente Próximo
eram free for all e área de conflitos
tribais e religiosos. Só que, em
1959, alguém baralhara as cartas da maneira errada. Fidel Castro. A existência
de uma Cuba vermelha debaixo da barriga dos yankees
era motivo de êxtase para o mundo comunista. Para Tio Sam, uma verdadeira pain in the ass. Três anos depois,
Kennedy e Khruschev haviam ficado cara a cara por causa da ilha caribenha. A
coisa foi arreglada no último minuto
com trocados (a volta dos cargueiros soviéticos, a demolição de uma base de
mísseis inoperantes na Turquia), mas o recado estava dado – os Estados Unidos
não iriam admitir outra brincadeira no seu quintal.
E, então, chega 1964. Afilhado político do
socialismo de Getúlio Vargas, Goulart não lhe herdara nem a persona política nem a sagacidade de
estadista. A rigor, Jango estava
enredado num Congresso conservador e não conseguia despertar o fervor popular
que seu padrinho manejara com maestria. A única saída para ganhar peso eleitoral
era aproximar-se das lideranças comunistas das ligas camponesas, do
sindicalismo e dos escalões mais baixos das Forças Armadas, todos inspirados
pela retórica de Fidel e Che Guevara, cuja missão auto imposta era disseminar a
revolução soviética por toda a América abaixo do Rio Grande (Rio Grande ao sul do Texas, bem entendido...). Goulart acabou sendo cooptado por elas e
tornando-se refém da intensa pressão que exerciam para que ele acelerasse o
processo de reforma que guindaria o país para a esquerda. Já se sentia algo no
ar, pronunciamentos de parte a parte, de ministros do Governo, de parlamentares
dos diversos partidos, dos altos escalões militares, num fogo cruzado
inquietante, quando a Presidência da República anunciou a realização do Comício
do dia 13 de março.
O que entrou para a História como o Comício da
Central, por ter sido realizado em frente à estação ferroviária da Central do
Brasil, no Rio de Janeiro, reuniu quase 200 mil pessoas, com transmissão via
rádio e TV. No palanque, ou próximo a ele, aglomerava-se a nata da militância
de esquerda do trabalhismo, dos movimentos rurais, dos clubes de cabos e
sargentos, das centrais sindicais, da inteligentzia
social-comunista do país. Mas não foi isso que marcou o dia ou que detonou
o que viria a seguir. Foi o discurso de Jango.
Numa oração de meia-hora, que logo de início atacava
o status quo da organização
político-social vigente, ele anunciou que havia promulgado uma série de atos do
Executivo cujo objetivo imediato era implantar as bases de uma ampla reforma
agrária, com a desapropriação de terras e sua distribuição para camponeses e
pequenos agricultores. Ao mesmo tempo, havia encampado todas as refinarias
particulares e preparava-se para promover uma reforma política que, além de dar
o direito de voto ao analfabeto, proporcionaria a “renovação” do Congresso
Nacional, privilegiando a inclusão de operários, camponeses e sargentos. Quase a cada frase, a multidão irrompia em
aplausos e gritos de ordem.
Os dias seguintes foram frenéticos. Reagindo ao soco
no estômago e à iminência de uma verdadeira revolução promovida pelo próprio
Governo, a oposição parlamentar, as grandes organizações patronais, a mídia
conservadora e as Forças Armadas reagiram e começaram a preparar a deposição do
Presidente. Precisavam apenas de dois avais. Um, o da Sociedade, que respondeu
organizando mega manifestações de rua em repúdio às propostas de Jango, que ganharam o significativo
título de “Marchas da Família com Deus e pela Liberdade”. Foram várias, em várias cidades. Em São
Paulo, mais de 500 mil; no Rio, quase um milhão. Outro, o dos irmãos do Norte. Para os Estados Unidos,
um Brasil comunista seria uma catástrofe, outro revés inadmissível em seu
quintal.
Dezoito dias após o Comício da Central, com o
beneplácito dos Governos de Minas, São Paulo e Guanabara, o Exército avançou.
Sem o disparo de um só tiro, dominaram Brasília e todos os centros nevrálgicos
importantes. Oferecendo nenhuma resistência, João Goulart e seus seguidores
mais próximos deixaram o país. Iria começar mais um capítulo de nossa saga
pátria, que duraria 21 anos. Mas, isto já é outra história...”
Falar de fatos históricos com 50 ou mais anos de
idade, sem entender e compreender o ambiente em que eles aconteceram, é falar
fora de contexto. As opções que estavam na mesa à época eram diretamente antagônicas
e auto excludentes. Sem ter medo de palavras, a escolha era entre um regime de
exceção de direita e outro de esquerda. Dizer que os antagonistas do movimento
de março lutavam pela democracia é uma falácia. Hoje, até os mais destacados
líderes contrarrevolucionários reconhecem que seu objetivo político era a
implantação de uma ditadura do proletariado.
Teria sido melhor? Depois de ver os resultados da
governação comunista, desde seu surgimento há 100 anos, na União Soviética, na
China Vermelha, na Albânia, no Cambodja, na Romênia, em Cuba e na Coreia do Norte, eu sinceramente duvido.
Oswaldo
Pereira
Abril
2019