Em março de 2013, escrevi este texto,
possivelmente na esteira de algum ato semelhante ao que ocorreu em Suzano.
“Na
minha infância, num mundo pré-televisão - tentem imaginá-lo!- a vida seguia
entre escola, “horas” de alguma obrigação enfadonha (hora do banho, hora do
almoço, hora da janta), brinquedos
inventados, pois os verdadeiros eram escassos e caros, e o momento da
aquietação, em que a criançada era recolhida na sala para amansar as energias
que ainda queriam sobrar inesgotáveis e se preparar para outra “hora” chata – a
de ir para a cama.
E
era exatamente aí que certas lições de vida nos chegavam pelas histórias
infantis, rótulo que podia abarcar desde sagas medievais até peraltices de
alguma criatura mítica, passando por toda uma antologia popular, adaptadas e
dramatizadas por quem, sempre com o firme intuito de nos fazer prender a
respiração e permanecer imóveis pela primeira vez no dia, as contava para nós ao seu jeito e com sua
inspiração.
Quem
isto fazia, a mais das vezes no interior de Minas onde eu morava, eram as
empregadas da casa, elas próprias sabedoras de algumas estórias apanhadas no
tempo, passadas de muitas gerações e nunca escritas, rolando de boca em boca ao
sabor de crendices e imaginações. Era uma enorme colcha de retalhos folclóricos
que costurava Irmãos Grimm com mulas-sem-cabeça, Hans Christian Andersen com Os
Doze Pares de França, e por aí vai.
Quando
aprendi a ler, abriu-se para mim o império das histórias em quadrinhos e seus
heróis formidáveis e justiceiros. Vinha tudo dos Estados Unidos onde, para mim,
o dia-a-dia devia ser um contínuo desfilar de tremendas batalhas entre os
diversos Marvels, Batmans e Superhomens da vez e seus ardilosos desafiantes. Um
pouco mais, o parco dinheirinho das mesadas já me permitia ir às matinés (arcaico para sessões de cinema
à tarde, destinadas à garotada imberbe), torcer para os mais rápidos gatilhos
do Velho Oeste e confirmar que a América já era a mesma terra impossível desde
o tempo dos cowboys.
Mais
um pouco, e então a adolescência nos apanhou e outras questões vitais nos
afastaram definitivamente do reino dos contos infantis.
Bem,
escrevi toda esta chorumela
nostálgica acima porque, pelo bem-aventurado fato de ter netos, há tempos venho
observando o que agora representa, para eles, a experiência cultural que recebi
em faixa etária semelhante. Como muito da argamassa de meus princípios foi
certamente influenciada pelo que vi e ouvi ainda criança, devo deduzir que o
mesmo pode acontecer com eles e que, portanto, o que veem e ouvem hoje poderá definir
uma parcela importante de seu caráter.
E
fiquei impressionado. Mal impressionado.
Os
atuais substitutos das empregadas faladeiras, das bandas desenhadas e das matinés, são os tablets, i-pads, i-pods e outras maravilhas eletrônicas que
qualquer pai põe ao alcance de seus filhos para fazer exatamente o que as
histórias contadas nas salas de antanho procuravam fazer – aquietá-los.
Tudo
bem.
O
problema é o conteúdo.
O
riquíssimo menu de jogos posto à disposição dos usuários deixa pouco espaço
para a imaginação. Começa pelo grafismo hiper-real da ação e continua pela oferta
de recursos de computação que permitem encarnar o agente do jogo com avançado
grau de realismo.
De
novo, nada contra a técnica desses role-playing
games, se bem que sua aplicação traz a realidade para muito perto e, talvez
na cabeça de alguma criança, confunda as linhas divisórias entre fábula e fato.
A
questão é a mensagem de violência que estes jogos trazem embutida em seus
enredos, seus objetivos e seu propósito.
Já
sei que vou escutar duas afirmativas. “Você está velho!...” Absoluta verdade. E
“no seu tempo, a maioria das historinhas, os super-heróis e os filmes de
faroeste também só mostravam
violência...”
Bem,
em termos.
João
e Maria foram aprisionados pela avó, a madrasta mandou matar Branca de Neve e
depois tentou envenená-la, havia gigantes maus e dragões furiosos. Mas, seu
irrealismo e seu cenário distante colocava os personagens e seu drama num plano
distinto do nosso quotidiano.
Os
grandes campeões dos quadrinhos defendiam a sociedade do Mal, sob qualquer
forma e, em vez de matar seus adversários, acabavam entregando-os à justiça,
onde invariavelmente eram julgados com rigor (ó inveja!...)
E
os nossos mocinhos do Oeste só
puxavam pelo colt depois de terem
apanhado como bois ladrões e em situação de insofismável legítima defesa. Mesmo
assim, o tiro fatal era rápido e antisséptico. Sangue, nem pensar.
Espero
que seja só um achaque nostálgico. Entretanto, me aflige observar um aumento
gradativo de agressividade entre os jovens. Os fatores devem ser vários, mas algo
me sussurra que jogos nos quais a ação violenta é um objetivo em si têm um
pouco de culpa no cartório.
Com
a palavra, o futuro.”
Como
estamos em 2019, já entramos seis anos nesse futuro. Talvez, já que muitos doutores em comportamento humano vieram
a público reafirmar suas ideias de que os gráficos jogos nada têm a ver com a
violência irracional que tem explodido com frequência cruel entre os jovens, eu
possa estar errado.
É
também claro para mim que a falta de uma família estruturada por trás de uma personalidade
em formação é fator mais que determinante. Tenho netos na adolescência que passam
mais tempo do que seria recomendável imersos no mundo digital dos games. Nem por isso estão dispostos a
cometer qualquer desatino. Seus lares cheios de amor, atenção e carinho os
defendem e os educam para não cogitar cometê-los.
O
que eu quis, e quero, dizer, é que a semente da violência incubada no grafismo dos
jogos, se caída no solo daninho de uma mente jovem desprovida do amor e dos cuidados
permanentes de pais atentos, poderá germinar e parir um monstro.
Oswaldo Pereira
Março 2019