terça-feira, 27 de novembro de 2018

LER SARAMAGO





Memorial do Convento estava na minha lista de resoluções há muito. Um livro indispensável no currículo de leituras, quase uma obrigação para quem quer intitular-se uma pessoa lida. Resolvi, então, preencher essa imperdoável lacuna.

Mas, para ler Saramago é preciso uma preparação séria, um tomar de fôlego antes de mergulhar nas suas páginas e nadar debaixo da superfície de seus intermináveis parágrafos, de seus diálogos emendados, banhar-se na cachoeira de palavras buscadas nos confins de um complicado dicionário. É preciso fé e vontade. E é preciso, sobretudo, perseverança.

Como já lera O Evangelho Segundo Jesus Cristo e A Jangada de Pedra, julgava-me apto a enfrentar o desafio, até porque ambos me haviam revelado o intrigante estilo do velho mestre, o inesperado intercalar de páginas áridas com oásis literários de extrema beleza, a deliciosa surpresa de encontrar de repente, no virar de uma folha, aninhada no seio de longas frases descoloridas, uma cintilante imagem, burilada com o toque inconfundível do gênio.

Além disso, estivera dias antes no Palácio de Mafra, a icônica obra setecentista de D. João V, cuja construção, que levou vinte anos, é o tema central do Memorial. Estava, assim, motivado para embarcar em mais um Saramago. Um livro de 400 páginas sobre a construção de um convento no início do século XVIII? Bem, seria o que Deus quisesse...

É um acostumar que leva umas vinte páginas. Como um afinar de instrumentos antes de uma grande sinfonia. As primeiras trocas de tintas numa paleta de Van Gogh. As marteladas iniciais de Michelangelo no mármore frio. E, não mais que de repente, a magia começa a trabalhar. Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas deixam de ser argila e ganham a vida que nos fará enveredar pelas montanhas do oeste português, palmilhar as ruas de uma Lisboa cortesã e miserável, subir aos céus na Passarola do padre Bartolomeu de Gusmão (sim, aquele nosso padre voador) e sentir a monumental obra arquitetônica crescendo mercê do trabalho e do sacrifício de um caudal de gente arrebanhada aos milhares pela necessidade ou pelo sonho. Todo o seu drama está lá, cru e poético, lírico e brutal.

É Saramago em todo o seu esplendor de ser Saramago. Sua cadência, sua linguagem, seu gênio. Para descrevê-lo só me ocorre um adjetivo. Incomparável.

Oswaldo Pereira
Novembro 2018

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

POR QUE BOLSONARO?




Há dias, um francês amigo meu, que mora em Estrasburgo, mandou-me um e-mail pedindo que eu respondesse a duas perguntas: Por que Bolsonaro? e O que será do Brasil agora?

Disse-lhe no e-mail de retorno que, para atender a este pedido, não haveria espaço num simples correio eletrônico e que o melhor seria conversarmos sobre o assunto pessoalmente, se possível com uma taça de um bom vinho da Alsácia na mão. Lembrei-me, mas não lhe repassei, de uma frase do Tom Jobim. O Brasil não é para principiantes.

Lembrei-me também que mantenho este modesto blog e que, venturosamente, possuo raros mas abnegados leitores em vários países e que para eles teria a oportunidade, senão a obrigação, de oferecer-lhes a minha visão sobre o conturbado presente do meu país.

Antes disso, gostaria de mostrar minhas qualificações para tal tarefa. Tenho, com alguns interregnos em que morei no exterior, 78 anos de Brasil. Nasci na ditadura de Getúlio Vargas, assisti à sua deposição no vento democrático que soprou no mundo inteiro ao término da Segunda Guerra Mundial, à sua reeleição quatro anos depois, ao afundamento de seu Governo no “mar de lama” denunciado por Carlos Lacerda, ao seu trágico suicídio, ao surgimento da estrela de Kubitschek, aos “50 anos em 5”, à construção de Brasília, custeada com o esvaziamento dos cofres das Caixas de Previdência e com  o início da grande espiral inflacionária. Vi a chegada do paladino Jânio Quadros e de sua vassoura, com a qual prometia varrer a corrupção. Vi também sua inesperada renúncia, creditada por ele próprio à ação de “forças ocultas”. Vi a posse de seu vice, João Goulart, garantida pelo Exército, o mesmo que, em resposta ao clamor de milhões de brasileiros, o destituiria três anos depois, no momento em que seu Governo apoiava os movimentos esquerdistas que haviam se infiltrado nos campos e nas fábricas e até nas fileiras castrenses. Vivi sob o Regime Militar, o sonho do Brasil Grande, o crescimento galopante do PIB, a Economia em pleno emprego, enquanto ouvia à boca pequena histórias de perseguição, repressão e tortura. Presenciei a saída voluntária dos generais, abrindo o país para sua redemocratização, a esperança, logo decepada pela doença, de Tancredo Neves, as trapalhadas de Sarney, o aparecimento meteórico de outro Dom Sebastião, o “caçador de marajás” Fernando Collor. Sofri mais uma decepção quando a República de Alagoas se revelou um clube fechado de roubalheiras bilionárias, com o impeachment inevitável. Um Dom Sebastião improvável acabou sendo Fernando Henrique Cardoso, com seu socialismo moreno e seu Plano Real. Até chegarmos a Lula. Como vocês podem avaliar, posso ser tudo, menos um principiante em matéria de Brasil.

O primeiro mandato de Luis Inácio Lula da Silva foi empolgante. Definindo como sua única prioridade tirar 40 milhões de brasileiros do abismo da fome, seu Governo iniciou a criação de vários programas de auxílio aos pobres extremos como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, entre vários outros projetos assistenciais a fundo perdido. Eu, que não havia votado em Lula e que pertencia ao grupo social que iria pagar a conta, isto é, a Classe Média, não pude deixar de aplaudir. Um sacrifício fiscal a mais para salvar compatriotas da miséria? Por que não?

Quatro anos depois, a coisa começava a desandar. O propósito inicial de inclusão de milhões nas classes C e D e, a partir daí, criar as condições básicas de educação, saúde e emprego para que esses milhões pudessem elevar-se acima do assistencialismo, não acontecera. Pior. Para garantir a reeleição, o Governo e seu partido majoritário, o PT, passaram a usar a esmola distribuída pelos diversos programas como chantagem eleitoral. Disseminando a ideia de que a escolha de outro candidato significaria o fim da assistência e a volta da penúria, transformaram em reféns dezenas de milhões de eleitores.

Por esta altura, e com a criação do Foro de São Paulo, a esquerda latino-americana rejubilava-se com sua liderança política em países como Venezuela, Equador, Bolívia e Brasil. E projetava perpetuar-se no poder. Se acharem que estou exagerando, basta ir ao YouTube e testemunhar os entusiasmados e beligerantes discursos de José Dirceu, Evo Morales, Hugo Chavez. E de Lula.

Impedido constitucionalmente de concorrer a mais uma reeleição, Lula tirou do bolso uma figura que cumpriria o mandato tampão e garantiria sua volta ao Poder quatro anos depois. Dilma Rousseff. E esta figura, dada sua inépcia, incompetência, estúpida arrogância e despreparo acabou por se transformar na mais desastrosa governante da história brasileira. Pelo menos, destes últimos 78 anos em que vivi e vi. E quando Lula se preparava para voltar, a criatura virou-se contra o criador e, dando mais uma prova de sua infinita falta de noção, resolver candidatar-se à reeleição.

Por essa altura, sinais de que o grande projeto de inclusão social dos mais pobres não passara de um embuste, e de que a classe média chegava ao limite de aguentar o peso esmagador de impostos sem contrapartida começavam a aparecer. O quadro agora era de exclusão, com os degraus mais baixos das faixas C e D afundando-se abaixo da linha da pobreza.  

Para manter sua hegemonia e assegurar que suas propostas políticas fossem aprovadas num Congresso já então à venda, o PT abriu sua temporada de compra de apoio e de sustentação do seu projeto de poder a qualquer preço. E o preço foi alto. As folhas de pagamento do Petrolão e do Mensalão começaram a atingir valores estratosféricos. Desvio de verbas, sucateamento de infraestruturas, saque aos cofres de empresas estatais, como a Petrobrás, foram as fontes usadas para financiar o regabofe.

As consequências, como não podia deixar de ser, foram cruéis. Com o dinheiro dos impostos indo para o propinoduto da corrupção desenfreada, o panorama social passou a revelar uma educação em frangalhos, uma saúde pública destruída, estradas deterioradas e a segurança das grandes cidades reduzida a praticamente zero. Quando a Operação Lava-Jato começou a revelar a extensão quase incompreensível do conluio criminoso do Governo com grandes empreiteiros e políticos a soldo, as reações de repúdio dominaram o país.

E aí deu-se a polarização. Com o PT empenhado cada vez mais em reter o comando político e mobilizando suas lideranças para uma guerra de ameaças e radicalizações, em direção diametralmente oposta grandes fatias da população brasileira foram adotando o mesmo estilo de discurso inflamado contra o Governo. E procurando um líder que incorporasse o profundo sentimento de revolta contra tudo o que o PT significava.

Jair Bolsonaro era um político de pouco poder de fogo partidário. Seu partido era um dos muitos nanicos, com representação marginal no Congresso e sem apoio popular. Mas Bolsonaro tinha um discurso forte, deselegante e truculento às vezes, extremado na maioria delas e isto o tinha permitido reeleger-se deputado federal durante 30 anos por uma minoria identificada com sua filosofia. Graças a isto, ele sempre ficou à margem das grandes negociatas e dos obscenos favores transacionados numa Câmara e num Senado de vendilhões e desonestos de toda sorte. Assim “purificado”, e à medida que o repúdio e a aversão contra o PT iam tendendo para o limite, seu discurso passou a coincidir com a esperança dos que se desesperavam com um Brasil ao saque e em descaminho.

E aqui é preciso entender que Bolsonaro não é um projeto da Direita brasileira. Estas cores partidárias e filosóficas há muito deixaram de existir no cenário político. O que prevalece hoje é o confronto entre a desonestidade e o patriotismo, entre aqueles para quem o Brasil é meramente um pântano de propinas e os que têm esperança num país com futuro. As referências de Bolsonaro a Deus e à Pátria (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos), ridicularizadas pela mídia internacional como piegas e retrógradas, acabaram por ecoar fundo num povo massacrado por anos de assédio criminoso às reservas da Nação.

Bem, tudo isso deve chegar para explicar o Por que Bolsonaro?

Agora, que futuro nos espera, isto eu só posso especular. Bolsonaro vai-se deparar com um país dividido social e politicamente, um Congresso à mercê de grandes interesses, um Brasil que necessita urgentemente de reformas para sair do atoleiro institucional em que se encontra, com suas infraestruturas básicas na Saúde, na Educação e na Segurança esfaceladas. Lidar com tudo isto e com a ferrenha oposição que o PT e uma mídia hostil vão desencadear e proporcionar a recuperação de valores de que tanto precisamos  representam uma gigantesca missão. Se cumpri-la, Jair Bolsonaro poderá tornar-se na grande figura da história pátria deste século.


Oswaldo Pereira
Novembro 2018






sábado, 10 de novembro de 2018

ELEIÇÕES INTERCALARES





As eleições de “meio termo” (midterm elections), nos Estados Unidos, são um teste à atuação da Presidência. Como ocorrem dois anos após a posse de um primeiro ou de segundo mandato, funcionam como um exercício de avaliação ao trabalho da administração governamental e, ao renovar a Câmara de Representantes, parte do Senado e muitos dos Governos estaduais, fornecem significativas indicações para o futuro do morador da Casa Branca.

Desde William Taft, em 1910, quando o calendário político passou a consagrar a prática, até Barack Obama, essas eleições intercalares têm trazido alguns dissabores para os Presidentes, frequentemente mexendo no equilíbrio do bipartidarismo americano e revertendo o domínio deste ou daquele partido sobre o Congresso. Ocorrem muito tempo depois da lua de mel que os presidentes eleitos ou reeleitos gozam nos primeiros meses no ofício e servem como uma advertência, uma indicação do humor dos eleitores e, principalmente, como uma prévia do que poderá acontecer dali a dois anos, quando das novas eleições presidenciais.

Com Donald Trump, não podia ser mesmo diferente. O seu estilo truculento não deixa muita margem para composições e, na base do ame-o ou deixe-o, a manifestação do eleitorado polarizou-se numa divisão profunda entre Republicanos e Democratas. A imprensa chamou o resultado de mixed result, ou seja, um emaranhado de perdas e ganhos que poderá, ou não, ter efeito na atuação de Trump.

Para já, o término da hegemonia republicana na Câmara, que durava doze anos, vai dificultar o jeito “locomotiva” do Presidente. Muitos representantes democratas já anunciam que lhe vão “cortar as asas” e tentar conduzi-lo a uma postura política menos arrogante. Alguns até intuem que um processo de impeachment poderia fluir mais facilmente numa assembleia com maioria democrata.

Por outro lado, Trump consolidou sua posição no Senado, o que lhe abre as portas para nomear a Suprema Corte mais conservadora da história recente americana, criando uma salvaguarda para possíveis maquinações da oposição.

Vai ser um jogo de xadrez complicado, tendo em um dos lados do tabuleiro um jogador impaciente, frenético, mas, ao mesmo tempo, sagaz e avesso a derrotas.

De qualquer maneira, o sentimento é que os Democratas, até aqui ainda humilhados pelo insucesso de Hillary Clinton, voltaram a sonhar com daqui a mais dois anos. Vai ser no mínimo emocionante observar a cena política americana nestes próximos tempos.

Oswaldo Pereira
Novembro 2018

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

ANOTAÇÕES DO JAPÃO




A Idade Média, no Japão, terminou em meados do século XIX. Antes disso, o país vivera 200 anos sob o mando dos shoguns, fechado para o mundo, preservando sua cultura e o código de honra dos samurais. Mais para trás, os primeiros ocidentais a aparecer haviam sido os portugueses, à espera de incluir aquelas ilhas de pescadores em sua rota de comércio. Ao tentarem implantar a cruz do cristianismo num povo profundamente enraizado nos princípios de suas crenças ancestrais, os portugueses cometeram um erro. Foram rechaçados. A experiência gerou o isolacionismo. Só em 1866, quando o Imperador Meiji iniciou sua reforma, abolindo o shogunato e o regime feudal, o Japão abriu-se para o mundo. E isto explica muita coisa.

A primeira grande percepção de quem chega é cultural. É um Oriente quase paradoxal, em que hábitos ocidentais estão apenas na superfície, nos ternos escuros dos executivos, nos vestidos de grife das mulheres, na profusão intoxicante de celulares e grande magazines de eletrônica, nos imensos edifícios empresariais feericamente iluminados, nos trens a 300 quilômetros por hora.

Debaixo desta pátina de modernidade está um Japão austero, hierárquico, ritualístico e religioso. É o Japão de uma paisagem repetida de casas cinzentas, de templos e santuários em permanentes celebrações silenciosas, de relacionamentos secos e sem efusão, de uma dedicação quase visceral à limpeza, à ordem e ao respeito. A família está na base de uma sociedade altamente competitiva, onde a formação e a disponibilidade para trabalhar acima e além do razoável são indispensáveis. O bushido, o código de honra dos samurais, ainda está muito presente na alma japonesa. A autodisciplina e a exigência pessoal de cumprir à risca os propósitos de sucesso na escola, no trabalho e na vida familiar geram uma pressão às vezes insuportável. São 30.000 suicídios por ano.

TÓQUIO (GINZA) À NOITE

Para quem vem passear, entretanto, é uma viagem, no sentido mais delicioso da palavra. Uma experiência que toca com nitidez e força os sentidos. Os intrigantes sabores dos sashimis, do sakê e dos doces de chá verde, o som reverencial de um gongo num templo budista, a energia de uma manhã  fria e sem nuvens no sopé do Monte Fuji, a deslumbrante profusão outonal de incríveis matizes nas folhas dos plátanos nos Alpes Japoneses, a poderosa mensagem de Paz nos jardins de Hiroshima, a majestade  do grande Tori vermelho flutuando na preamar da ilha de Myiagima, o Grande Buda de Nara, as geikos do bairro Gion em Quioto, o formigueiro humano no cruzamento de Shibuyia e as luzes de Ginza em Tóquio ficarão para sempre na minha memória.
ILHA DE MYIAGIMA

MONTE FUJI, COMO EU O VI...

Um enigma e um sonho. Assim é o Japão.

Oswaldo Pereira
Novembro 2018